um acidente

Vinícius Silva escrevia. Dedicava as poucas horas do dia que tinha para trabalhar em seu primeiro romance, intitulado Carmelina. As demais horas trabalhava em um emprego qualquer somente para ter onde dormir e o que comer. Era impressionante o tempo que uma pessoa precisava sacrificar; seu bem mais precioso, e em pleno século XXI, só para ter onde cair morto. Se pudesse, viveria embriagado e escrevendo, mas se não trabalhasse, não teria dinheiro suficiente para uma boa bebida e condições de curar com eficácia o desgaste físico da ressaca de cada dia seguinte. Evitava tornar-se um andarilho louco e infeliz. Logo, era o preço que pagava.

Porém, certo dia, ao ir trabalhar de moto, sofreu um acidente. Ficou inconsciente. Sua consciência não teve consciência do ocorrido. Estranho, não é? Fato é que teve a lúcida impressão de ter voltado à vida, ou de simplesmente estar vivo. Mas não conseguia conectar-se a realidade, com a ascensão temporal de ocorrências das quais interagimos e alinhamos nossos pensamentos para vivermos no aparente mundo real. Será que a psicose havia tomado conta? Em uma crise, será que um psicótico sabe que pode estar sofrendo de um delírio? Pensava.

Um porteiro vestido a rigor abria-lhe a porta de um aconchegante salão. Mesas estavam postas em cinco colunas e duas fileiras cortadas por um tapete vermelho central, e praticamente todas estavam ocupadas. Havia um piano aos fundos, onde terminava o tapete que vinha da entrada, e um sujeito magro, com cachos bem penteados, preparava-se para tocá-lo. O balcão com bebidas e petiscos concentrava-se em uma das laterais do salão. Um velho de touca e aparência de mendigo estava sentado em um dos banquinhos por lá. Parecia ser a véspera de uma esplêndida festa. Garçons corriam de um lado para o outro, com suas camisas brancas e gravatas borboleta; o estranho é que pareciam ser todos garotos. Crianças até. Reparou que trajava sua habitual botina marrom, um jeans surrado que gostava e uma camisa polo preta. Quanto aos demais presentes, a vestimenta variava.

Ao concentrar-se em tentar esboçar qual seria seu próximo passo – provavelmente, sentar-se a mesa mais próxima vazia; apenas duas das dez estavam desocupadas –, petrificou-se. Tinha alcançado a loucura, com certeza. Isso não era exequível. Todos os rostos eram-lhe familiares, de todas as mesas. Aos fundos, o sujeito pálido do piano simplesmente parecia o próprio Frédéric Chopin. Era Chopin? Nas mesas sequentes, uma delas era ocupada por dois sujeitos barbudos; o da longa barba branca lembrava Liev Tolstói, e o da barba negra, Fiodor Dostoiévski. Eram eles? Comiam pães e bebiam alguma dose transparente; Vodka? Ao lado, outros dois velhos barbudos e fortões; ambos de túnicas. Parecia ser Platão e Aristóteles. Aparentemente, discutiam veementes a ponto de saírem logo no tapa. Na mesa, um galão de vinho e duas taças.

Na próxima seção, um bigodudo dividia a mesa com: um senhor calvo e de costeletas, um típico perfil francês com uma longa cabeleira, e um terceiro de cavanhaque. O de cavanhaque entretinha-os. Isso era possível? Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, René Descartes e Irvin Yalom? Mas o último, ao contrário dos outros, ainda era vivo. Não era? Ambos bebiam algum licor de frutas junto de petiscos que não conseguiu discernir pela distância. Na mesa ao lado, não… Mark Twain, Ernest Hemingway e Francis Scott Fitzgerald. Eram eles! Esses eram. Mark com seus cabelos desgrenhados e bigode grisalho; Ernest de bigode escuro, e camisa listrada entreaberta; e Scott com a classe impecável de um old sport, o único de gravata. Conversavam e mantinham suas taças cheias de um champagne dourado e cristalizado.

A seguir, uma mesa vazia com uma garrafa de uísque pela metade e um cinzeiro. Teve a impressão de ser a mesa do velho do balcão, que usava touca e uma roupa gasta e desleixada, com um copo de uísque em uma das mãos e um cigarro na outra. Só podia ser ele. Henry Charles Bukowski Jr, em pessoa. Na mesa ao lado, estranho… um gordinho calvo de bigodes fartos e compridos devorava com avidez uma refeição. Na mesa, havia frutas, legumes, verduras e temperos. Na outra ponta, era uma imensa barata? O que era aquilo? O animal, ou inseto descomunal, vestia um terno, e comia as sobras que o companheiro lhe jogava em uma bandeja metálica. Gustave Flaubert e Franz Kafka?

A mesa mais cheia e movimentada era composta por… Sul-americanos! Garrafas de cerveja e copos rolavam soltos. Detinham o aspecto mais festeiro. Um senhorzinho mulato de óculos sem hastes devia ser Machado de Assis; dois senhores robustos de cabelos e bigodes brancos – Jorge Amado e o colombiano Gabriel García Márquez; e por fim, um senhor com face austera e de óculos redondos, Graciliano Ramos. Na mesa ao lado, um sujeito esquisito com aparência de louco. Bebia um chope, e um capacete de motociclista estava em cima da mesa. Não tinha certeza, mas parecia ser Robert Pirsig.

Por fim, na última coluna, um careca comprido, de óculos escuros, camisa de praia, samba canção florido e tênis de corrida, com um par de meias que quase tocavam seus joelhos, simplesmente dançava em cima da mesa com uma piteira e cigarro na boca, e uma garrafa de rum em uma das mãos. Como alguém podia dançar sem som, se Chopin ainda nem havia começado? Hunter Thompson. Era o único que podia. Do outro lado, perto da entrada onde estava, a segunda mesa vazia. Acima, uma garrafa de algum destilado junto de um copo de 50ml. Estranho, parecia-lhe familiar tanto a garrafa, o líquido quanto o copo. Ocupou a mesa, e encheu-o. Onde mais poderia se sentar? E, se estivesse louco mesmo, que mais poderia fazer se não convidar a loucura para valsar? Ou, nesse caso, seria ela que havia te convidado?

Experimentou a bebida, e ficou atônito. Era cachaça, e das nobres! Sem dúvida daquelas envelhecida em tonéis de carvalho por mais de cinco anos. Virou a dose, e serviu-se de mais uma. Precisava organizar as ideias. O que agora deveria fazer? Chopin já começava sua primeira valsa, a “Grande Valse Brillante Op. 18 em E-Flat Major”.

Deixando-se embalar pelo som, tomou sua resolução. Abraçaria o desvario. Era muitíssimo agradável para recusá-lo. Só por via das dúvidas, buscaria mais informações desse evento improvável com o colega da mesa em frente. Pegou sua garrafa e seu copo, e foi em direção a Robert Pirsig:

– Com licença, senhor, posso me juntar contigo?

– Por favor, fique à vontade.

– Prazer, me chamo Vinícius.

– Robert.

– Entendi… Bom, Robert, do que isso se trata? Quem faz essa festa? E quem são os convidados?

– Quem faz a festa é o senhor Gatsby.

– Gatsby, de “O Grande Gatsby”?

– Isso.

– Impossível. Como assim?

– Como assim o quê?

– E os convidados? Quem são eles? Ainda existem algumas cadeiras vazias. Vem mais gente?

– Escritores beberrões, a raça mais maldita que existe. Logo chega a segunda leva.

– Que segunda leva?

– De personagens, assim que Chopin entra com “Vivace Op. 34”.

– Personagens?

Ao olhar ao redor, uma massa de pessoas adentrava o salão. Pela postura ao caminhar, manifestavam todos estarem confortáveis, como se estivessem em casa. Havia também mulheres no meio, além de outro velho de túnica. O de túnica juntou-se aos filósofos do período antigo. Um sujeito magricela com olhar desvairado sentou-se ao lado de Dostoiévski, e um casal ao lado de Tolstói. Todas as cinco cadeiras ocupadas nessa mesa.

Um aparente profeta barbudo com vestes brancas compridas e cordão dourado na cintura sentou-se ao lado de Nietzsche. Na mesa do champagne, um gentleman sentou-se ao lado de Scott, e um velho com aparência maltratada ao lado de Ernest. A seguir, na mesa que deveria ser de Bukowski, cinco mulheres de aspecto vulgar da meia idade que haviam abusado de maquiagem e de roupas decotadas ocupavam as cadeiras. No balcão, Bukowski conversava com um cara grandão. Ambos bebiam uísque e fumavam. Enquanto na mesa ao lado das mulheres, uma donzela, acompanhada de um sujeito com ar bonachão, ocupavam as cadeiras ao redor de Flaubert, e um miúdo sujeitinho sentava-se ao lado da barata, entretendo-a.

Na que estava com Robert, um irmão gêmeo, certamente, do escritor, veio e sentou-se ao lado:

– Prazer, Fedro. Novo aqui? – perguntou.

– Sim, prazer, Fedro. Me chamo Vinícius. Irmãos gêmeos? – devolveu.

– Quase isso…

Hunter Thompson era o único que ainda estava sozinho. Agora estava caminhando ao redor das cadeiras, em círculos, e meu Deus, ele estava armado com uma pistola em um coldre junto à cintura, e parecia desvencilhar-se de algo que queria atingi-lo pelo alto. Na mesa, a garrafa de rum, cinzeiro e diversas drogas inimagináveis para um exímio perito em entorpecentes. E, no que seria sua mesa, um casal acompanhado de um velho de bigodes grisalhos. Não podia acreditar… Era Carmelina, Geraldo Prado e Dr. Olivetti! Pediu licença a Robert, e foi sentar-se com eles:

– Como isso é possível? Carmelina e Geraldo? E Dr. Olivetti?

– A possibilidade tem limites, meu caro. Recomendo que a deixe de lado por hoje, e aprecie a festa – respondeu Dr. Olivetti.

– O que fazem aqui?

– O mesmo que você. Viemos nos divertir, beber e dançar – devolveu Geraldo.

– E você, Carmelina? Como você é linda…

– Vim acompanhar Geraldo – pronunciou corada.

– Senhores, por favor, concedam-me a licença. Logo torno a retornar. Preciso conhecer esses sujeitos para concretizar a existência de vocês no universo finito de possibilidades do qual ainda não o conhecem. Preciso correr antes que eu acorde, ou… não sei… – disse um pouco confuso finalizando sua bebida, e enchendo seu copo novamente.

– Vá divertir-se, rapaz – devolveu Dr. Olivetti já se servindo de cachaça, e acenando para o garçom trazer outra garrafa.

Antes de sair, jurou que o garçom se havia apresentado como Pedro Bala, e disse que mandaria um tal de Sem Pernas trazer a nova garrafa. Caminhando já um pouco embriagado pelo salão, ao som de Chopin e com rostos conversando entretidos, pensava: Com quem começaria? Onde se sentaria e qual mesa iria ocupar?

– Vinícius, venha, sente-se conosco. Puxe uma cadeira! – alguém berrou parecendo ler seus pensamentos.

Ao correr a vista para tentar compreender quem o chamara, descobrira ser Scott Fitzgerald. Puxou uma cadeira da mesa dos homens de túnica, e sentou-se ao lado dele, ainda incrédulo:

– Scott… Eu não acredito… Como sabe meu nome?

– Seu romance, Carmelina, é sensacional.

– Mas como se ainda nem o terminei?

– Aqui o tempo é relativo, jovem – disse Ernest do outro lado.

– Desculpe a indelicadeza, mas e vocês, quem são? – perguntou ao velho e ao homem com vestes elegantes.

– Espere, não falem… Santiago e Jay Gatsby. Isso?

– Acertou, old sport – respondeu Gatsby levantando sua taça de champagne.

– Meu Deus… O que devo fazer para terminar meu romance e estar à altura de vocês?

– Nunca fazer essa pergunta – respondeu abruptamente Ernest Hemingway. E continuou:

– Um verdadeiro escritor não escreve para leitores, para a fama e nem por dinheiro. Escreve porque não consegue evitar. Um verdadeiro escritor ri na cara da morte, e bêbado, convida-a para dançar. Um verdadeiro escritor escreve a caneta, com a tinta de seu sangue. Porque as palavras saem de seu âmago, e, portanto, são sinceras. Por meio de seus personagens, ele almeja a verdade mesmo ela sendo subjetiva; e conseguinte, apresenta a sua, sabendo não estar certo e nem errado. Um verdadeiro escritor não frisa a divulgação, mas a produção de sua arte com fim em si mesma.

– Desculpe-nos a brutalidade de Ernest, mas ele é assim mesmo. Não ligue – disse Scott.

– Se ligo? Claro que não – respondeu – Senhores, rodarei mais um pouco. Não fazem ideia do prazer que foi conversar com vocês. Logo os vejo – despediu-se.

– Oh, Huck Finn! – gritou Mark Twain.

Apareceu outro garçom adolescente:

– Por favor, leve a cadeira que Vinícius está sentado para onde ele desejar – pediu.

– Oh, mas é claro. Mas levar somente a cadeira seria muito fácil. Tom Sawyer me caçoaria depois. Por favor, posso levá-la com apenas um dos braços. Ou melhor, com o esquerdo, que é meu fraco, e ainda pulando, e não caminhando? Posso, Mark?

– Sim, Huck, pode. Esses garotos…

– Vamos, Vinícius! Onde desejar – pronunciava o garoto todo agitado.

Com seu copo já vazio em mãos, escolheu os russos. Ao chegar, e ver que o observavam, perguntou:

– Senhores, perdoem-me a indiscrição, mas poderia juntar-me a vocês?

– Claro, sente-se – disse a única mulher da mesa, de cabelos levemente encaracolados, a pele clara, e os olhos vibrantes – Qual seu nome? – perguntou enquanto Huck colocava a cadeira próxima e esperava como uma sentinela atrás dela.

– Vinícius, e o seu?

– Anna. Anna Karênina.

– Vejo que seu copo está vazio. Aceita vodca? – perguntou o cavalheiro ao lado da moça.

– Sim, claro – respondeu tentando decifrar quem era.

– Ah, perdão. Constantino Dmitrievich Liévin, mas pode me chamar de Kostia. Prazer.

– O prazer é meu, acredite – respondeu, enquanto levantava seu copo em direção à garrafa de vodca que Kostia manuseava para servir-lhe.

– Deixe-me adivinhar, você só pode ser Rodion Românovitch Raskólnikov – apontou para um rapaz de olheiras profundas e com faces chupadas.

– Sim, está certo – respondeu o outro com indiferença.

– Certo…

– Não ligue para Rodia, ele não é muito bem-humorado, e evita aglomerações – informou Fiódor Dostoiévski.

– Ah, sim, tudo bem. Senhores, adianto um pedido de desculpas pelas perguntas que irei fazer, mas não consigo evitar de fazê-las: como podem escrever romances de cerca de mil páginas com personagens tão maravilhosos? Em textos menores percebo a prolixidade de escritores contemporâneos que tentam alcançá-los, mas nunca conseguirão.

– Escrevemos com autenticidade e uma singular pluralidade. Visamos personagens autênticos e completos, com suas virtudes e mazelas. Não discriminamos a natureza humana por aceitar sua vileza, mesmo sendo contra ela em certas ocasiões. Portanto, para abordar personagens complexos, precisamos abraçá-los por completo – disse Liev Tolstói.

– Entendo. Fiquei com uma pulga atrás da orelha quando li Anna Karênina. O senhor a estima ou não? Alguns críticos dizem que o senhor faz dela uma heroína, outros uma vilã. Qual o certo?

– Respondi na frase anterior essa pergunta – disse com um sorriso no canto dos lábios, direcionando uma piscadela para Anna, e servindo-se de uma golada de vodca em seguida. Fiz o mesmo com meu copo cheio.

– Senhores, vou caminhar por aí. Não fazem ideia do quanto me significou conhecê-los – respondeu Vinícius.

– Vá em paz, rapaz – disse Kostia.

Huck já pegava minha cadeira. Estava ficando bem embriagado. Era melhor tomar um ar; ou melhor, um copo d’água serviria. Avistei um jovem garçom mulato que passou rápido, e pedi que me trouxesse água quando possível. Ele respondeu:

– João José, ou Professor, ao seu dispor. Trago logo – e saiu.

Vinícius observou os filósofos de túnicas. A mesa estava bem agitada. Sócrates no meio tentando acalmá-los, com Aristóteles e Platão que ainda discutiam, sem entrar em consenso. Melhor não ir até lá. Na mesa detrás dos russos, alguém o chamou:

– Vinícius, sente-se aqui conosco – disse o profeta.

– Opa, claro – respondeu indo sentar-se entre o profeta e Irvin Yalom. Huck novamente ficou atrás. Dessa vez, achou que o menino não conseguiria avançar com a cadeira. Seu braço esquerdo tremia e fraquejava a cada pulo que dava, mas não largava sua resolução absurda. Avisou-o:

– Huck, obrigado, garoto. Está dispensado, vá divertir-se em algum lugar com Tom Sawyer.

– Entendido, senhor – e saiu correndo.

– Então, diga-me Vinícius. Estava aqui discutindo com Zaratustra, e tenho uma pergunta para você – disse Irvin Yalom.

– Veja, escrevi “Quando Nietzsche chorou” e “A cura de Schopenhauer”, mas venho aqui na festa toda noite por irritar-me com a vida mundana, a aparente realidade, por estar velho demais e não ter tido tempo de ter escrito “Quando Descartes perdeu a razão”. Por isso, pergunto: um escritor é um artista incompleto? Responda.

– Nossa, que pergunta. Bom, mas vamos lá… penso que a arte é a manifestação humana mais nobre ao lidar com o pesar da existência, justamente por querer não só livrar-se do peso da morte, mas principalmente aceitá-la e enfrentá-la. Pois pensamos que vivemos, mas na realidade, a cada segundo que passa, morremos. Estamos morrendo. Nossa trajetória não segue a vida eterna, mas dirige-se em direção à morte dessa manifestação consciente da qual somos tanto apegados, e da qual nós cremos como uma realidade única e absoluta. O silêncio e a paz são o manto e o calção da morte. Logo, as representações artísticas surgem como uma espada para o artista travar uma luta com ela. Do outro lado, o tempo, a espada que a morte ostenta em um dos braços, torna-se pequeno e irrelevante, débil e desamparado, mesmo que por breves momentos. Um escritor, pintor, músico, esportista ou qual seja sua aptidão, vive enquanto dança, escreve, pinta ou faz amor com sua amada. Então, respondendo diretamente a sua pergunta, nunca sairemos vitoriosos ao final desse duelo; mas mais importante que isso, é terminá-lo de pé, e quem sabe, levando ainda alguns rounds.

– Sábias palavras – disse o de bigodes.

– Senhores, com licença, vou caminhar pelo salão. Prazer conhecê-los.

– Ah, deixo uma máxima para vocês: acima de tudo, um escritor é um filósofo, ou um filósofo é um escritor? Qual é o complemento? Há algum? – soltou ao sair. Os sujeitos ficaram de olhos esbugalhados, e tornaram a conversar sobre.

Ao visualizar o salão, percebeu que na mesa detrás, os sul-americanos haviam juntado sua mesa com a das mulheres, e um negrinho entretinha-os todos com um baralho. Vestia o traje de garçom, mas não trabalhava. Usava um chapeuzinho de palha, e tinha o ar trocista e de malandro. Vinícius deu risada, só podia ser o Gato. Na mesa ao lado, Flaubert ainda comia. A madame parecia entediada, e o homem pomposo ao lado manifestava exceder na ternura de frases que a ela dirigia. A dama era a ele indiferente. Certamente o casal Bovary. Kafka estava ao lado da barata. Mas quem era Kafka, o sujeito tísico ou o inseto?

Hunter Thompson havia se juntado a Charles Bukowski no balcão. O sujeito entre eles devia ser Henry Chinaski. Bukowski estava devorando Carmelina com o olhar, e Geraldo parecia prestes a levantar e dar um pontapé na bunda do velho. Avistou a cachaça na mesa. Precisava de mais bebida. Voltou para sua mesa e enquanto servia-se, soltou:

– Não ligue para a encarada do velho, Carmelina. Nós, escritores, somos todos infelizes e tolos egocêntricos. Ao menos, a maioria. Mas Bukowski é o mais egocêntrico de todos. É somente um infeliz gênio tolo e amargurado.

– Não ligue? Estou prestes a dar-lhe uma surra – proferia agitado Geraldo, com o braço ao redor de Carmelina. Estavam juntos.

– Acalme-se, Geraldo. Vinícius bem explicou, é um velho safado somente – disse Dr. Olivetti.

De nada adiantou, Geraldo, com um ímpeto incomum, desses que surgem esporadicamente em intensidade absurda em sujeitos costumeiramente apáticos, levantou-se da cadeira, e foi em direção ao velho. Vinícius seguiu-o, mas não teve tempo de alcançá-lo. Quando Chinaski e Thompson notaram sua presença, já era tarde demais. Geraldo puxou o velho do balcão, e acertou-lhe um cruzado de direita no lado esquerdo da face. Bukowski titubeou, mas não caiu. Chinaski e Thompson seguravam o velho, atordoado; Vinícius tentava acalmar Geraldo. O caos dominava, e Chopin ainda tocava piano, agora “Sostenuto in E-Flat Major”.

Vinícius sentiu uma pressão muito forte em sua cabeça, e desmaiou. Geraldo, Carmelina e Dr. Olivetti juntaram-se a seu lado. Estava caído no chão. Apagou. Como se o ar tivesse voltado a seus pulmões, puxou-o intensamente e voltou à realidade. Estava em um quarto branco, com teto branco, aparelhos brancos e vestes claras. Um hospital? Tomava soro em um dos braços, e observou pela janela de vidro do lado de fora do quarto, sua ex-esposa, sua mãe e sua avó agitarem-se quando notaram que havia acordado. Ninguém nunca acreditaria no que tinha vivenciado.