– Toc, toc, toc – batiam a porta do casebre duas moças com cestos de flores nas mãos.
– Vão embora. Quantas vezes precisarei implorar que quero ficar sozinho? Deixem-me em paz! – alguém gritava de dentro.
– Mas, Henry Thoreau, queremos apenas convidá-lo para dar graças a nosso Senhor que nos permitiu adentrar o paraíso para convivermos com irmãos e irmãs tão esplêndidos por toda eternidade – devolveu uma delas.
– Eu recuso o convite, e novamente, agradeceria se não mais me importunassem todas as manhãs.
– Não podemos fazer isso, bobinho, nem nós duas nem tantos outros que vem chamá-lo todos os dias para partilhar a alegria da eternidade aqui no paraíso. Amamos muito você para deixá-lo aí dentro trancado, em silêncio, e sempre sozinho.
– Arrr, maldição, não há terras ermas no paraíso! – lamentava o ermitão.
Enquanto isso, no inferno, outros dois de seus colegas norte-americanos, Charles Bukowski e Hunter Thompson, passavam por agonias proporcionalmente semelhantes. A penitência de Bukowski fora a de toda bebida que levasse a boca se transformar em água; e a de Hunter Thompson, de nunca mais ter devaneios e alucinações, vivendo e gozando de sua impiedosa eternidade com dias e noites idênticas sem o auxílio de drogas alucinógenas.
A improvável circunstância que veio unir esses compatriotas decorreu da apatia que vinha sofrendo um empresário brasileiro. Depois de ler Schopenhauer, Nietzsche e Machado de Assis, Tadeu Ribeiro havia perdido o pulso firme na direção de sua companhia, que empregava centenas de brasileiros, e sustentava conseguinte a mesma proporção de famílias. E, era esse entrave que preocupava o Criador. Tadeu perdia a fé na ressurreição e na promessa da vida eterna, e estava prestes a fechar seu negócio, levantar a grana qual fosse que conseguisse, e dar no pé para morar em alguma pacata cidade europeia pelo clima que mais lhe agradava. Deus não podia isso permitir. Então bolou um plano, com uma boa dose de comicidade, característica principal de sua criação, e por isso convocou os três gringos para uma reunião, em que proporia um desafio de redenção para cada um deles.
– Toc, toc, toc – batia à porta do casebre que Thoreau construíra logo nos primeiros meses que chegara ao céu. Apesar de tentar se instalar o mais afastado possível, ficava bem próximo de outras casas e prédios e terrenos, pois mesmo tendo percorrido todo o paraíso a pé quando viera, descobrira não haver por lá nenhuma possibilidade de isolamento; o céu estava lotado.
– Já falei, não quero receber ninguém, me deixem sozinho! – Henry Thoreau berrava.
– Filho, sou Eu, seu Pai, e trago dois irmãos. – disse Deus, referindo-se a Charles Bukowski e Hunter Thompson, que fora buscar no inferno.
– Pai? John? Ué, tenho outro irmão que não conheci? – indagava ao ir abrir a porta.
– Não, meu filho; sou seu Pai e de seu pai também, e de toda a Criação – respondeu Deus assim que Thoreau abriu a porta.
– Deus?
– Sim, filho. Sou Deus. Podemos entrar para falarmos? Tenho uma proposta para vocês três que pode agradá-los, se puderem cumpri-la.
– Sim, podem entrar – respondeu Thoreau dando passagem.
Depois de se acomodarem em volta da pequena mesa de jantar, Deus tomou a palavra:
– Filhos, conheço-os o bastante para mesmo na eternidade ir direto ao assunto. Sei que não passam por boas novas na infinitude da criação, seja aqui no paraíso, ou no inferno, que é uma réplica da Terra. E que você, Henry, por teimosia, recusa o emplasto Brás Cubas que é deixado a sua porta todas as manhãs. Por isso, tenho uma missão para vocês três. Para assegurar a fé de um filho meu que está se perdendo em dialéticas filosóficas contemporâneas do século XXI, farei com que os senhores desçam até ele para comprovar assim, perante seus olhos duvidosos, a Minha Existência. Ele os conhece, leu vocês, e irei informá-lo em um sonho bem lúcido que deverá recebê-los na festa de confraternização da empresa dele. Lá estarão muitas famílias das quais me preocupo, e que, portanto, invisto nesse empreendimento com o fim de favorecê-las. Pois caso Tadeu perca de vez a fé em Mim, muitas desgraças acontecerão a inocentes, e não posso isso permitir e assistir daqui do céu.
– Henry, caso cumpra sua missão, poderei te entregar uma ilha aqui no paraíso para viver sozinho, como deseja, pela eternidade, e só receber visitas quando te interessar. Hank e Hunter, arranjarei para vocês lugares aqui também, caso cumpram seus respectivos desafios. A você, Hank, poderá voltar a embriagar-se todas as noites, com total carta branca; e você, Hunter, construirei um espaço temático de pura psicose, e colocarei você nele sem que haja qualquer necessidade de usar substâncias tóxicas.
– E qual é a missão? – perguntou Thoreau.
– A você, Henry, será a de pregar uma palestra motivacional para os trabalhadores continuarem engajados, cientes da importância do progresso socioeconômico no contexto inclusive religioso; A você, Hank, será a de cuidar do bar da confraternização sem encostar a boca em nenhuma bebida alcoólica durante toda a noite, pois lá ela não se transformará em água, mas caso a beba, o preço será a mesma penitência que vem cumprindo; Já a você, Hunter, será o de cuidar do espaço destinado aos meus anjinhos, as crianças, na área de recreação. O que me dizem? Topam?
– Posso usar alguma droga lá? – perguntou Thompson.
– 30g de maconha é tudo que permitirei, Hunter.
– E será que vão nos reconhecer? – perguntou Bukowski.
– Não, Hank, vocês irão disfarçados, e cuidarei disso. Henry irá como um homem alto e negro, você será uma loira de pele bem clara, e Hunter uma negra senhorinha abastada – uma gracinha.
– Eu topo, não tenho nada a perder – retornou Bukowski.
– Topo – respondeu Thoreau.
– 30g… Não é muito, mas okay, topo também – finalizou Thompson.
– Estou muito feliz com essa iniciativa. Lembrem-se, a conduta dos senhores será avaliada durante todo o período; e se vão juntos, devem voltar juntos. A passagem será aberta para retorno somente uma única vez. E o evento é já essa noite. Então, se preparem.
Assim, Deus despediu-se dos três, para logo em seguida introduzir uma forte dor de cabeça em Tadeu, suficiente para fazê-lo ir para casa em pleno expediente de sexta-feira descansar. Quando deitado, adentrou a consciência do infeliz, e explicou que provaria para ele a existência da vida eterna conquanto este não fechasse a fábrica e a mantivesse com todas suas energias pelas próximas duas décadas.
O local de encontro dos quatro seria na dispensa da cozinha, perto do salão de festas, poucos minutos antes de chegarem os convidados. Os três regressariam a terra pela porta de um dos armários que serviria como passagem.
– Então, são vocês? – perguntava Tadeu ao ver sair da porta um negro, uma loira e uma velha.
– Sim, somos nós – respondeu o homem. – Onde deverei pregar a prosa motivacional?
– Os convidados estão começando a chegar; será em breve. Avisarei vocês. Thoreau, certo? Quanto a vocês, quem é Bukowski e quem é Thompson?
– Sou Hank. Onde fica o bar? – perguntou a loira.
– Na lateral do salão. Então você – disse Tadeu apontando a velha – deve ser Hunter Thompson; O espaço de recreação fica ao ar livre, perto dos banheiros.
– Mas, antes de partirem, por favor, me digam, como é o céu? E como é o inferno?
– Idênticos a Terra, ambos; o que difere é a perspectiva de quem habita – respondeu Bukowski.
– No inferno não há chamas nem penitências físicas abusivas?
– A maior penitência no inferno é a eternidade – disse Thompson.
– E o paraíso, Thoreau, como é? – perguntava Tadeu.
– Lotado; imagino que seja um inferno semelhante.
Assim cada qual foi para seu posto. Ao lado de Thoreau, Tadeu cumprimentava os colaboradores que chegavam com seus familiares e iam ocupar as mesas; Thompson fora cuidar do parquinho de diversões, e algumas crianças por lá já brincavam; e Bukowski ocupava a parte interna do balcão de bebidas, que proporcionava uma vista panorâmica de todo o salão. Logo veio o primeiro pedido.
– Muita gente bonita por aqui hoje. Gostaria de uma cerveja, por favor – galanteou um sujeito.
Sabendo que cantadas sujas e obscenas poderiam fazer parte do pacote de penitências da noite, e que a tendência era só piorar com o tempo, Bukowski resignou-se, abriu a geladeira e entregou uma long neck ao rapaz, que trabalhava no setor de expedição da empresa de Tadeu.
– Obrigado, minha flor. Posso saber seu nome?
– Veneno – respondeu a loira.
– Olha que até posso ser imune – proferiu o sujeito.
– Não com esse tipo, palhaço. Cai fora.
Enquanto isso, Thoreau começava a ficar preocupado. Não havia ainda refletido sobre o que falaria do assunto. Invocar a importância do trabalho, do progresso socioeconômico e de bens materiais fora tudo o que ele foi contra em vida; O que pregaria?
– Tadeu, preciso de sua ajuda; não sei o que falar; que analogias baratas posso usar com essa gente?
– Hum… Você pode fazer comparações com o futebol. Aqui, todos adoram. Nossa empresa teve um desempenho absurdo de bom nesse ano. Fale que como os grandes do futebol, estão de parabéns por terem vestido a camisa e os valores da empresa, e resistido aos imprevistos da economia como guerreiros, para assim, obtermos resultados condizentes como a melhor companhia nacional no segmento, e logo, quem sabe, a maior internacional. Algo assim.
No parquinho, Thompson observava as crianças, que já lotavam o lugar. Um grupinho de adolescentes aproximou-se dele, e um ruivo de sardas lhe dirigiu a palavra:
– Ei tia, queremos algodão doce. Em todas as festas que vamos, se não tem carrinho de pipoca, ao menos um de algodão doce tem pra gente. A senhora pode, por favor – frisando a clemência nessas duas últimas palavras – nos providenciar isso? Ficaríamos imensamente gratos.
– E eu tenho cara de doce, seu peste? Vá brincar nesses brinquedinhos inúteis e dê o fora daqui – respondeu rispidamente a velha.
Em questão de segundos, os meninos da frente deram espaço aos detrás, e foi então que Thompson percebeu que dois deles carregavam baldes cheios de um líquido de coloração estranha. Não teve tempo nem de se levantar; recebeu dois jatos de urina misturados com água de vaso sanitário e dejetos antes que pudesse gritar.
– Malditos! Eu ainda pego vocês – vociferava enquanto os meninos já se dispersavam e corriam.
O salão já estava cheio por completo. Garçons e garçonetes corriam com bandejas repletas de drinks e petiscos e cervejas para atender aos colaboradores e seus familiares; pelo menos umas duzentas pessoas estavam presentes, sem contar as crianças. Foi então que Tadeu levou Thoreau a um pequeno palanque que dava acesso para pista de dança; pediu para que pausassem a música que tocava nas caixas de som de teto instaladas; e com um microfone na mão direita, preambulou:
– Boa noite a todos. É com muita alegria que compartilho essa confraternização com os senhores, colegas de mesmo time, esse ano esplêndido que tivemos e que nos proporcionou estabilidade no mercado e uma cartela sólida de clientes satisfeitos. Agradeço a presença de cada um, incluindo familiares que ainda não tive o tempo que gostaria para conhecer. Vocês compõem a alma e o corpo desse empreendimento. Aqui, ao meu lado, gostaria que ouvissem brevemente o que esse pregador tem a dizer. E depois, aproveitem a festa; ela é de vocês.
– Boa noite – disse Thoreau ao tomar o microfone.
Apenas um sussurro de “boa noite” ecoou de volta; fazia-se silêncio por completo, e enquanto fumava um cigarro de maconha, até Thompson, no parquinho, podia escutar o que era dito dentro do salão.
– Trabalhar é importante… Trabalhar em prol da competitividade é nobre, sublime e importante… Isso, trabalhar para a sociedade é… É nobre, é sim… A produtividade é…
– Ei, fale logo o que quer dizer, e que volte a música – alguém da plateia caçoava.
Thoreau continuou:
– O que quero dizer é que essa empresa é mais que uma companhia do ramo tecnológico; é um baluarte de famílias. Quando trabalham com convicção e determinação, o diferencial competitivo não gera apenas mais fatias de mercado, recolhendo porções financeiras de seus concorrentes que compartilham das mesmas necessidades; não… Isso gera a oportunidade de vocês, unicamente vocês, com rendimento superior, trocarem seus carros, comprarem motos esportivas para o final de semana, financiarem uma casa ou um apartamento mais espaçoso, terem móveis sob medida, e guloseimas diárias vitais para a sobrevivência e para a felicidade de nossa espécie. O que seria de nós sem as pizzas de noite? Ou os lanches e churrascos e refrigerantes e hamburgueres? O que seria de nós sem os bares e restaurantes e cidades turísticas para passearmos? O que seria de nós sem os programas e séries de televisão, sem os celulares grandes e modernos, e a oportunidade de passear com nossos pets para postarmos fotos nas redes sociais, e mantermos nossas reputações digitais com coraçõezinhos e likes? O que seria de nós se não pudéssemos gastar o dinheiro que ganhamos? Bem-aventurados, o que seria de nós se não pudéssemos doar uma minúscula parte para causas carentes, para famintos e necessitados, e ainda dar uns trocados para mendigos exaustos que andam aos montes pelas calçadas sem vida, só então para nos sentirmos melhores conosco, e acreditarmos que é justo nós termos tanto, e outros terem tão pouco? O que seria de nós se não fossem o trabalho voltado para o desenvolvimento material de nossa sociedade, que permite que tenhamos necessidades tão vitais satisfeitas, como é o caso do produto que manufaturamos. O que seria da espécie humana se todo o dinheiro do mundo acabasse e não pudessem mais gastá-lo? Certamente a ruína… Certamente… Assim não conseguiríamos nos entreter com passatempos vitais para nossa felicidade… Então, é por isso que o resultado que tiveram esse ano demonstra o valor que deram as duas virtudes mais importante do homem: a ordem, de bem agradados, perseverar passivamente e não questionar, e o progresso, de sempre querer ter mais. Neste ano, foram dignos dos craques do futebol. Continuem e perseverem. Não façam nunca, nunca, nunca perguntas tolas sobre o porquê das coisas ainda mais apelando para o lado existencial e filosófico, e ensinem seus filhos a fazerem o mesmo. Perseverem no progresso. Orientem seus filhos a fazerem uma faculdade qualquer, se importarem com a opinião alheia de seus grupos sociais, trabalharem em prol da ascensão socioeconômica para então melhorarem de vida. É só assim que podem melhorar de vida. O fator da condição de vida é externo; não é interno, não é interno! Devemos responsabilizar nossas condições por nossos comportamentos; que ensinemos sempre isso a eles; deixem que nossos jovens namorem, gastem com roupas e shoppings e cinemas e bares, depois formem família, comprem veículos, financiem o labor de décadas por um minúsculo espaço de terra horizontal ou vertical, para assim, conseguirem descansar na velhice enquanto seus filhos, e no caso, os nossos netos, continuem tudo de novo. E se não forem na igreja no começo dos anos e da juventude, não forcem; deixem que compareçam depois de velhos com a pulga atrás da orelha sobre o porquê de terem feito o que fizeram, e que então comecem a fazer perguntas rasas e obtusas sobre a fragilidade da vida, e já no fim delas, tenham pouquíssimo tempo e ímpeto para encontrar respostas por meio de perguntas corretas. É isso. Obrigado.
O silêncio reinava; até as crianças pararam de falar. Tadeu iniciou uma batida de palmas, e aos poucos alguns entoaram no salão; muitos estavam confusos, sobre o sentido de tudo aquilo. E foi nesse meio tempo que o sujeito que havia cantado Bukowski aproveitou do momento de descontração e voltou ao balcão, só que do lado de dentro, para tentar uma encoxada no belo traseiro da loira. Quando Bukowski sentiu algo roçar suas nádegas já era tarde, virou com tudo e esbofeteou o sujeito, que caiu atrás do balcão; este, querendo se levantar para revidar, não teve nem sequer essa oportunidade; a loira bofeteou uma garrafa de cerveja vazia na cabeça do homem, que caiu desmaiado. Ninguém notou nada, e Bukowski chutou o infeliz para mais debaixo do balcão. Tamanha aflição deixara-o excitado para injetar, ao mínimo, cinco doses de Jack Daniels consecutivas, mas o medo de retornar a penitência pela eternidade o afligia. Precisava suportar.
Sob o céu estrelado, Thompson já havia formulado sua vingança. Depois de se enxugar na toalete como pode, dirigiu-se ao grupinho de meninos que circundavam um gira-gira. O ruivo disparou uma pergunta antes de Thompson avançasse mais.
– O que quer tia? Desculpe-nos a brincadeira; espero que esteja tudo bem.
– Fiquem tranquilos, não vou machucá-los, pirralhos. Tenho uma oferta. Alguém aqui já se tornou homem o suficiente para dar um trago em um cigarro de maconha? – devolveu revelando dois cigarros que trazia nas mãos.
– Hum, é maconha mesmo?
– Sim, e divina, eu diria.
– E o que a senhora espera que a gente faça em troca?
– Nada, apenas irmos fumar escondido na lavanderia, aos fundos do banheiro feminino. Só gostaria de vê-los chapados, se tiverem a coragem, é claro. Se não vou entender que ainda não são homens o suficiente.
– Tomas, é melhor não irmos, não é bom usarmos drogas – avisou um dos integrantes do bando ao ouvido do ruivo.
– Acalme-se Breno, a gente dá conta da velha, caso ela queira aprontar conosco. – E dirigindo-se a Thompson: – Eu vou, e te alerto, caso esteja tramando algo, a senhora se verá comigo. Quanto a vocês, – voltando-se para a turminha que havia agrupado ao longo da noite, muitos até colegas de escola, – não vou obrigá-los. Quem quiser experimentar vem comigo.
No salão, a pista de dança reinava a todo vapor. Perto dali um grupo de homens rodeava Tadeu e Thoreau, direcionando ao segundo perguntas que facilitariam compreender o que o pregador quis dizer com seu discurso.
– Qual foi o propósito de sua palestra? – perguntou um deles.
– O de ter terras ermas no paraíso.
– Como assim? O que isso quer dizer?
– Precisei pregar para jumentos para poder viver eternamente como águia.
– Vixi, o cara é doido – um de trás comentava rindo.
– Gente, vamos deixá-lo em paz, vamos circulando; aproveitem a festa. – Intercedia Tadeu.
– Puxa, Thoreau, não tem como maneirar o que fala aqui? É só aguentar o resto da noite que completará o desafio proposto por Nosso Senhor – disse Tadeu quando se afastavam da muvuca.
– Esse é o problema. Aguentar aqui parece outra eternidade. Pessoas falando, rindo, comendo, gritando; só vejo animais insanos. Não sei se vou suportar; estou com vontade de sair correndo.
– Acalme-se homem, vou ajudá-lo; saber que Nosso Criador não nos abandonou foi uma benção para mim. Consegue imaginar o quanto estou feliz com a certeza de que viverei contigo no paraíso?
– Comigo, não. Espero que bem longe. Não quero ver mais ninguém depois dessa noite. As relações sociais são um erro; não há nelas nobreza, nem mesmo na caridade. As pessoas relacionam-se ou por conveniência ou por manutenção de valores pessoais que moldam sua identidade.
– Pera lá, essa é sua versão. Eu já penso o contrário. Mas, quer saber… Vamos pegar uma bebida no bar com Bukowski.
Antes de chegarem ao bar, Bukowski travava uma conversa íntima com uma morena. Aparentemente, essa havia achado a loira uma gracinha.
– Então, você mora aqui por perto, é? – perguntava Bukowski.
– Sim, em quinze minutos chegamos a minha casa; moro sozinha. Adoraria que me fizesse companhia essa noite, se desejar. Que horas termina seu turno aqui?
– Turno? Por mim é pra já, gata. Dane-se o bar. No entanto, depois precisarei voltar. Você me traz de volta?
– Claro. Então, vamos nos divertir, aqui já está enfadonho.
Foi quando saíam que Tadeu e Thoreau alcançaram o casal.
– Ei, Bukowski, aonde está indo? – perguntou Tadeu.
– Bukowski? Mas me disse que seu nome era Tabata – falou a morena.
– É Tabata sim, meu bem. Pessoal, volto de manhazinha. Tomem a chave do armário de destilados. Por favor, cuidem do bar para mim algumas horinhas apenas. Logo volto – falou Bukowski jogando um molho de chaves para Tadeu.
– Ei, isso pode dar problemas com o cara de cima, não pode?
– Claro que não, o combinado foi suportar a sobriedade; e estou me saindo melhor que esperava. Falou – e saiu de mãos dadas com a morena.
– Manter a sobriedade e cuidar do bar a noite toda. Não sei se Deus pegará leve com ele depois, mas pouco me importo com isso – comentou Thoreau.
– Sim, mas venha, vou abrir um bom vinho para nós.
Na lavanderia, Thompson, Tomas, o ruivo de sardas, e dois meninos curtiam a brisa tragando charutos de maconha; a salinha não tinha janelas, e com a porta fechada, uma densa nuvem cinzenta impregnava o ambiente. Era difícil até mesmo vê-los a si próprios. Assim, depois de deixar os garotos doidões, foi que Hunter, um a um, algemou os meninos com toalhas que havia pegado antes no banheiro. Só depois de estarem os três sentados ao chão, de costas um para o outro, com os braços amarrados e presos, que se deram conta da armadilha que caíram. Antes que pudessem gritar, descobriram que um pano úmido com forte cheiro de urina estava amarrado em suas bocas. Estavam presos, e sozinhos na apertada lavanderia. Hunter não estava mais lá.
A confraternização terminava; a aurora ameaçava iluminar a chácara onde o evento ocorria. Muitos pais já tinham ido embora, e quando três deles foram perguntar dos garotos para Thompson, essa dissera que partiram com coleguinhas. No começo, as mães, tão embriagadas quanto os maridos, ou até pior, indignavam-se com a escassez de informação que a velha encarregada de cuidar dos pequenos durante a festa transmitia.
– Como assim, a senhora está doida? Como deixou meu filho ir com um coleguinha sem me avisar? Conheço pouca gente aqui; por que não me chamou? – uma delas esperneava.
– Acalme-se senhora. Tomas, Carlos e André foram juntos com o mesmo amiguinho. A mãe deles, que não me lembro do nome agora, me disse que amanhã ligará para vocês, e dará um jeito de devolvê-los. Tadinhos, tavam tão felizes brincando juntinhos; só quiseram continuar juntos mais tempo.
– Ei, Tadeu! – chamava Thompson ao avistá-lo sair do banheiro. – Por favor, avise essas mães desesperadas que amanhã verão seus filhos de novo – pediu a velha, expondo novamente a falácia ao empresário.
– Você promete que foi isso que aconteceu? – perguntou Tadeu desconfiado.
– Sim, Tadeu, por toda a eternidade.
– Então tá. Gente, fiquem tranquilos, amanhecendo eu mesmo me certificarei com quem eles foram. Fiquem tranquilos. Em último caso, temos uma câmera aqui. Eu ligo para vocês em poucas horas. Podem ir descansar.
Ainda depois de muitas promessas e explicações, Tadeu conseguiu influenciar que os pais fossem embora. No salão, agora, restavam apenas os três aguardando Bukowski. Indiferente, Thoreau disse a Tadeu e Thompson:
– Por mim, íamos embora, Hunter. Charles sabia que devia voltar até a aurora. Ele que arque com as consequências.
– O porém é que Deus me orientou que partissem juntos, pois a passagem seria ativada somente uma única vez.
Foi nesse pé de conversa que Bukowski retornou ao salão. Um pouco atrasado, mas ainda em tempo. A noite com a morena havia sido furtiva e voluptuosa, apesar da ausência inédita de um pênis para seu usufruto.
– Estão prontos? – perguntou.
– Esperando você – respondeu Thoreau.
– Então, vamos. Quero voltar a embriagar-me ainda essa manhã.
E assim, partiram os três novamente, indo em direção ao paraíso, e carregando suas esperanças vis de conforto e entretenimento ao Criador.
Depois da despedida, Tadeu foi direto para sala de câmeras, pois não acreditara nem um pouco na velha. Regressou a filmagem que exibia o parquinho de diversões desde as nove horas da noite anterior, e a acelerou buscando ver qualquer atividade suspeita de Thompson. Em poucos minutos, notou que ela levara três meninos aos fundos do banheiro feminino, local que a câmera não alcançava, e pouco tempo depois retornava sozinha.
– A lavanderia…
– Arrr, tem alguém aqui? Maldita biscate! – alguém gritava do salão agora completamente vazio.
– O que aconteceu? – perguntou Tadeu, retornando pelo corredor, quando avistara Sérgio com a cabeça encharcada de sangue coagulado.
– Aquela puta loira do bar me acertou com uma garrafa em cheio.
– Meu Deus, fique calmo, Sérgio, vou levá-lo ao hospital. O ferimento é grave. Mas precisamos passar agora na lavanderia. Vem comigo, é urgente!
A porta estava trancada, e alguns gemidos saiam de lá.
– Vamos arrombar, Sérgio. Isso é sério.
Ao derrubarem a porta, viram os três garotos com as faces cobertas de lágrimas, e com os olhos absurdamente vermelhos. Desamarraram os meninos, enquanto Sérgio perguntava atônito:
– Meu Deus, quem faria alguma coisa dessas?
– Nem imagino, nem imagino…
Da passagem da dispensa, os três gênios retornaram direto para o casebre de Thoreau. Deus estava sentado na mesa, aguardando-os:
– Olá Papai, quando poderei beber novamente? – perguntava caçoando Bukowski – Aguentei bem essa noite, não foi?
– Temo que demore, filho. Por favor, sentem-se os três.
– Propus esse cômico desafio para avaliar se em décadas aqui na eternidade, poderiam ter desenvolvido novas virtudes. Além de pregar, Henry, seu teste era a capacidade de exercer a empatia, a compaixão e a amizade; o seu, Hank, de exercer a paciência com bajuladores como você fora quando vivo, além de não deixar por nenhum minuto o bar e sua função; e você, Hunter, como pode fazer aquilo com as criancinhas?
– Mas eu preguei sobre a importância do progresso socioeconômico, como pediu! – argumentava Thoreau.
– E eu só saí por uns minutinhos! – reclamava Bukowski.
– E eu fiz aquilo por causa do balde de urina que aqueles pestinhas jogaram em mim! – protestava Thompson.
– Filhos, confesso que para três gênios, precisam ainda desenvolver muita sabedoria. E é por isso que permanecerão mais tempo em suas penitências até que surja alguma nova oportunidade. É com muito pesar em meu coração que declaro minha sentença.
E dizendo isso, Deus, Bukowski e Thompson desapareceram em um piscar de olhos. Ambos voltavam aos seus repousos habituais e eternos.
Em míseros segundos depois, alguém batia novamente a porta do casebre:
– Toc, toc, toc.
– Quem é? – perguntava Thoreau ao ir abrir a porta, esperançoso com a possibilidade de o Criador ter retornado para revisar sua decisão para com ele.
Mas, quando a abriu, viu novamente as duas moças que lhe atormentavam todas as manhãs:
– Olá querido irmão! Vamos adorar a Deus bendizendo suas obras nessa manhã tão linda que floresceu?
– Arrr, maldição! – berrava enquanto esbofeteava a porta com toda sua força, fazendo tremer as frágeis estruturas do casebre que construíra no paraíso.