nuvens rosadas

quando foi que entrei em casa pela última vez?
as copas das árvores não se movem.
o azulejo laranja, da varanda, continua laranja.
o portão de grade permanece enferrujado.

olho no espelho e vejo olhos cansados.
o rosto permanece o mesmo de ontem e de anteontem e do ano passado.
ora mantenho a barba aparada.
ora retiro os pelos com barbeador.
e ele não se altera.
é o mesmo rosto estúpido.
e os mesmos olhos cansados.

assusto-me ao ver fotografias espalhadas pelos cômodos.
uma criança com seu bichinho de pelúcia abraçado ao peito.
um garoto sorrindo para a foto.
um adolescente inseguro com espinhas no rosto.
não sei quem são eles.

encho uma caneca de café sem açúcar.
sento no banco da varanda, e observo.
pessoas caminharem apressadas nas calçadas.
pessoas dirigirem carros e motos e ônibus e caminhões pela avenida.
pessoas conversarem ao passar.
sobre as mesmas coisas.
sobre os mesmos assuntos.
as mesmas histórias se repetindo, de novo.
e de novo.

tomo um gole do café.
um bando de pássaros alça voo de uma rua para outra.
as copas das árvores continuam paradas.
nuvens rosadas dissipando-se em um fim de tarde apaziguador.
que está passando.
que já passou.