O ápice da satisfação termina com o final do filme. Até agora, aguentávamos firmes as ondulações nada ortopédicas as quais nosso velho sofá não mais recomendável pra uso nos sujeitava. Mais que domingo, amanhã é segunda. Hora de dormir. O vizinho do apartamento acima me faz lembrar que moramos em um condomínio barato. Produz mais barulho que mãe em trabalho de parto. Filha da puta. E não digo barato pelo valor do aluguel, que é um dos mais baixos ofertados no centro da cidade, mas sim por causa das pessoas que nele habitam. Aquelas que necessitam ser queridas pela vizinhança e fazem isso por meio de conversas fiadas e muitas doses injetadas de pomposidade.
Minha esposa começa usar o celular na cama. Também pego o meu. Sexo, muito provavelmente, não é uma opção para esta noite. No aparelho, busco algum outro entretenimento em vão. Ao procurar alguma crônica revigorante para me entreter, deparo-me com várias matérias inúteis. Levanto-me para escrever estas notas no notebook almejando a evaporação. Estou queimando por dentro. Quero borbulhar todo esse calor, que não é febre. Talvez até seja, mas de alma. Para dissipar um pouco essa energia, uso dessas palavras. Ou melhor, será que consigo escrever uma crônica? Vou tentar.
Levanto-me imediatamente da mesa. Estou com uma cueca azul com um par de chinelos havaianas da mesma cor. Meus pés estão gelados. Vou ao quarto: visto um calção e uma camiseta azul larga. Vou pegar o vizinho. O filha da puta está no apartamento acima conversando com algum irmão da mesma mãe ou por telefone ou por notebook. Cansei de ouvir sua voz – vou aproveitar essa desculpa para aliviar minha tensão.
Minha esposa se distrai por um momento na cama e pergunta:
– O que vai fazer? – Ainda olhando para o celular.
– Vou trancar a moto lá fora – respondo com a primeira desculpa que me aparece.
Chego até a porta. Agora, além dos pés gelados, minhas mãos também suam e estão gélidas. Será que é certo fazer isso? Posso arranjar encrenca desnecessariamente. Aqui não sou muito querido, e certamente serei ainda menos depois disso.
Que se foda. Abro a porta. Sou recebido por um vento glacial como sinal de boas-vindas da madrugada que chega. Aceito o agouro, atravesso a porta, e fecho-a. As luzes automáticas revelam a minha presença. O vizinho do apartamento ao lado está acordado, mas não aparece. Olho para a escadaria à esquerda. Ela dá acesso ao corredor acima, onde mora o sujeito barulhento.
Por que a boca para de salivar nessas horas? Já estou arrependido de estar aqui. Devia usar outro meio para me aliviar. Por que se meter em confusão? Minhas pernas não correspondem aos meus pensamentos, e avançam o primeiro degrau da escada. O som provocado pelas passadas de chinelo deixa claro que alguém está subindo. Engulo uma porção de saliva seca. Mais um degrau. Devia ter tomado um copo d’água e vestido calça e tênis. Praticamente descalço, com pés suados e frios, sinto-me vulnerável.
Começo avançar freneticamente, como se estivesse decidido. Coincidentemente o bom moço para de falar ao telefone. Será que ele sabe por que estou vindo? Suspeita, certamente. Filhas da puta conhecem a mãe que têm. Terminei a escadaria. Após algumas passadas estarei lá. Que seja. Não penso. Avanço. Passada por passada até chegar à porta aberta do número 14.
As luzes acesas do apartamento ofuscam minha visão. Vejo um espaço vazio e inacreditavelmente sujo e mal arrumado. À direita, um fogão com duas panelas sujas encima seguido de uma pia de cozinha com alguns copos, pratos e talheres pendentes de lavar. No lugar que deveria ser a geladeira, não há nada. À esquerda, uma mesa de madeira com quatro pernas desgastadas está alocada ao fundo junto de duas cadeiras do mesmo gênero. Na frente um sofá.
O sujeito está lá, sentado, com um notebook no colo usando fones no formato de conchas em ambos ouvidos. Está descalço, com samba canção amarelo florido, e com uma camiseta regata cor de rosa. É moreno com um físico pouco acima do peso, mas com braços certamente mais grossos que os meus adjacentes em um corpo de sessenta e cinco quilos. Ele olha assustado para mim quando paro a porta. Acho que não esperava. Fico imaginando-me nos olhos desse infeliz. Ele sem dúvida vislumbra um fantasma magricela de olhos esbugalhados.
Ele salta de um pulo do sofá, jogando o notebook com o fone ao lado, e não diz, berra:
– Opa amigo, posso ajudar em algo? – Vindo em minha direção, como se fosse um bom rapaz.
Já que estou aqui e passei por toda essa provação de coragem e principalmente ousadia, tento mais que manter a pose: busco acreditar fielmente nela. Olho firmemente em seus olhos assustados e digo em baixo tom com os dentes entrecortados:
– Cale a porra da sua boca, quero dormir!
Ele abre a boca para falar algo, mas antes que pronuncie qualquer merda, alcanço-lhe um soco de direita na face. Ele recua. Recompõe-se. Com a mão esquerda no rosto, olhando perplexo para mim. Acho que não esperava tamanha petulância.
Escuto outros vizinhos abrindo a porta e vindo em nossa direção. Provavelmente minha esposa é quem vem gritando:
– GERALDO?!
Escutaram o tumulto. Antes de começarem a subir os degraus, sou agraciado com um jato de luz no rosto e acabo perdendo por um breve momento a noção de espaço. Recobro a consciência a tempo de perceber que fui acertado por um soco e quase caí de costas no corredor.
O filha da puta está de pé no limiar da porta, olhando-me embevecido. Encaro-o de volta. Os demais da vizinhança, incluindo o dublê de Billie Joe Armstrong, do Green Day, chegam gritando para entreter-se nesta noite de domingo até então sem graça. O Billie Joe entra no meio, e recua o sujeito do quatorze agora exaltado, ao mesmo tempo em que me orienta com os braços o caminho de volta. Já não escuto mais nada.
Minha esposa vem chegando abismada e encaminha-me junto abraçada para o nosso apartamento. A gritaria lá de cima continua, quando ela fecha e tranca a porta, assustada. O filha da puta tem mais jogo de cintura para expor sua indignação para a vizinhança, e aproveita toda a plateia que vai recebê-lo para situar-se como um refém e vítima de um louco.
A partir de hoje, os vizinhos certamente não mais me evitarão, como também me odiarão em qualquer oportunidade. Já não me preocupo com mais nada essa noite. Consegui o que queria. Distrair-me com um bom entretenimento. O golpe que levei com certeza não irá sumir logo, e, junto a ele, aproveito dessa experiência para registrar essa crônica. Ela vai constar em meu próximo livro.