loucos

Despertara. Correu as mãos pela cama para achar o celular. 8h44, ele informava ao ligá-lo. Assustou-se. Não ouvira o despertador tocar as seis, como de costume. Estava exausto e zonzo pelo excesso de bebida tomada na noite anterior. Seu primeiro pensamento foi o de afundar a cabeça no travesseiro e voltar a dormir, mas sua moral não permitia. Ao menos, tinha vergonha na cara. Francisco era professor de literatura, e ministraria essa disciplina das oito às dez para uma das turmas da escola que trabalhava. Já estava atrasado. Tomou sua resolução. Por causa da pandemia do coronavírus, as aulas eram virtuais, e mesmo que tivesse o hábito de ir até a escola para realizá-las, decidira postar no grupo de mensagens da turma que começariam o encontro as dez – mesmo que por lá já tivessem inúmeras mensagens de alunos perguntando se a aula de sexta-feira não começava as oito, pois era de fato o horário marcado. Faria a aula de casa.

Com a cabeça latejando e o corpo ameaçando cair, correu para o box para uma ducha gelada. Em seguida, preparou um suco com duas laranjas e um limão na cozinha. Seu celular tocava, mas receava investir a escassa energia que o mantinha de pé, mesmo que para pegá-lo no quarto. Provavelmente era alguém do trabalho, mas sua única preocupação no momento era realizar o maldito webinar. Depois pensaria em colaboradores, e além do mais, decerto já haviam visto a mensagem que havia postado aos alunos; a maioria estava no grupo. Vestiu o uniforme, sentou-se na escrivaninha e ligou o notebook. Ingressou no webinar ativando seu microfone e sua câmera, e cumprimentando os alunos com um mentiroso “bom dia”. A primeira coisa que notou ao estar na sala virtual foi sua aparência no seu vídeo que era exibido. Estava péssimo, com os olhos inchados e a barba por fazer. Mas decorreu com o conteúdo. No trajeto inicial, até surpreendeu-se consigo mesmo por conseguir efetuar explanações interessantes nas temáticas que percorriam, mesmo lutando para não desmaiar.

– Trim… Trim… Trim…

O barulho ensurdecedor provocado pelo interfone de seu apartamento avisava que alguém estava a sua procura. Interrompeu abruptamente o webinar desligando sua câmera e microfone, e foi atendê-lo de samba canção somente por baixo enquanto seu cão latia desesperadamente.

– ALÔ! SCOTT, QUIETO! – Implorava ao animal resistente em obedecê-lo.

– Olá Francisco, é o Tadeu. Consigo falar com você agora? Está tudo bem? – perguntava seu chefe do outro lado da linha.

– Puxa Tadeu, depois conversamos, pode ser? Estou em aula – devolveu tentando não refletir no tumulto que causava por terem vindo da escola até sua casa. Só interessava-lhe terminar a aula; nada mais. Depois lidaria com o resto.

– Ah, entendi. Não sabia do horário. Depois falamos então.

Pôs o fone no gancho, e rastejou até a cadeira. Nos minutos finais da aula, pigarreava pela ausência por completo de saliva na boca, como se sua língua fosse uma esponja; não das usadas, das secas lacradas que são compradas novas. Deu meio-dia. Encerrou a aula explicando aos alunos as demais atividades propostas. Danem-se as consequências, seu compromisso havia sido mantido. Avisou Tadeu pelo Skype que comeria algo e iria para escola para falarem por lá. Fechou o notebook e se levantara. Não se sentia mais tão fraco. Seu corpo certamente já estava se acostumando com a quantidade exagerada de bebida que consumia quase toda noite. Não se orgulhava nada disso, mas foi ver na geladeira as opções do que tinha para comer. Almoçar fá-lo-ia regurgitar. Comeu uma banana, uma maçã e uma pera. Na toalete, defecou uma merda que exalava um odor horrível, e tomou outra ducha gelada. Ao sair e enxugar-se, só então notou a bagunça de sua residência: na pia, uma garrafa de cachaça praticamente vazia, junto de pratos e copos por lavar; na mesa, a casca da banana que comera ao lado das long necks de cerveja da noite anterior; na cama, uma mistura de roupas e cobertores entrelaçados; no quintal, marcas de urina e fezes feitas por seu cão que ainda não limpara, espalhando no ambiente um aroma nada agradável pela janela aberta do quarto; e no chão, mechas de poeira acumuladas por todos os cantos. Tamanha displicência incomodou-o. Começou a arrumar o apartamento, item por item. Primeiro guardou o resto de cachaça no armário e deixou para fora as long necks; depois limpara a mesa, e lavara e guardara toda a louça; arrumou a cama, dobrando as roupas e esticando as cobertas; e finalizou limpando o quintal. Por mais que a fraqueza física de outrora tivesse retornado, sentiu-se melhor consigo mesmo. Alimentou Scott, pegou o capacete, ligou sua moto na garagem e foi até a escola.

Para renovar novamente suas energias que se dissiparam rapidamente com as frutas antes ingeridas, parou no primeiro ambulante de água de coco que encontrara. Uma mulher atendeu-o:

– Pois não, moço?

– Por favor, um coco gelado. Ah, vocês passam cartão? – Havia se lembrado de que estava sem cédulas na carteira.

– Nossa moço, nossa maquininha estragou. Aceitamos somente dinheiro.

– Fica para a próxima então, obrigado, – disse retornando para a moto estacionada na avenida, articulando ideias de onde conseguiria hidratar-se. Lembrou-se de uma padaria próxima a escola. Era caminho.

Mesmo que a água de coco fosse daquelas industrializadas, pouco lhe importava agora a procedência. Pagou por duas embalagens de duzentos mililitros cada no caixa, e finalizou a primeira de uma só golada ainda na padaria, deixando a segunda para tomar na escola com as uvas que carregava na mochila.

Depois de cumprimentar alguns colegas de trabalho que estavam por perto ao entrar, fora ocupar sua mesa. A conversa com seu superior estava marcada para as quatro. Eram ainda uma e dez; seu relógio de pulso informava. Foi comer as uvas e terminar com a água de coco no refeitório. No decorrer da tarde, enrolou como pode, apenas observando a luz emitida pela tela do notebook. Respondeu alguns e-mails, e aguardou dar cinco horas para partir. Suas mãos transpiravam, e um suor incomum emanava de sua nuca e testa. A inesperada ligação de sua ex-esposa para comentar sobre os últimos textos lidos animou-o um pouco. Encaminhava para ela toda semana a relação de contos produzidos. Mesmo separados, compartilhavam dos mesmos sentimentos do casamento anos antes, e reconhecia que não era fácil dividir a vida com alguém como ele, de interesses restritos e individuais. Tomou quase um litro e meio de água até por volta das quatro e meia, e quando Tadeu finalmente convidou-o para conversarem em uma sala frontal da escola, mais reservada e logo na entrada, já se sentia melhor para dialogar e raciocinar.

– Puxa, Tadeu, que trabalheira foi ir até lá, hein? – disse um pouco ruborizado, mas com sinceridade.

– É… então. Tinha um punhado de coisas para fazer pela manhã, e acabei me atrasando, mas vamos lá…

– Um bebum; é como me sinto agora – devolveu rindo.

– Entendo, mas por que você acha que aconteceu isso novamente pela segunda vez? – perguntou ciente de meses anteriores Francisco ter perdido um dia de trabalho por ocasião similar.

– Olha, eu sou um niilista. Minha crença é a de que tudo obedece a uma anarquia existencial, e de que nada faz absolutamente o menor sentido. Então, quando fico em casa, lendo e escrevendo, acabo bebendo também… Em geral de forma controlada, até umas três ou quatro doses, mas quando passo disso é difícil parar. E foi o que aconteceu ontem.

– Compreendo. Olha, Francisco, minha preocupação é ver contigo se isso acaba sendo uma decisão ou uma consequência. Se você tem o costume de beber e decide fazê-lo por gostar, ou se você acaba bebendo como consequência da vida que leva. Veja Tadeu, eu já tive muita dificuldade em me relacionar com as pessoas, e era muitíssimo frustrado por não saber como iniciar e manter diálogos saudáveis.

– Multiplique isso por cinco, é o meu nível em relações sociais – comentou rindo, ciente de que Tadeu sabia da vida monótona que Francisco levava, com afazeres extremamente específicos, como ler literatura clássica, escrever em sua máquina de datilografar, passear com seu cão, ou sozinho a pé, de bicicleta ou de moto, e por fim, tomar cachaça.

– Então, é por isso que comento. A ciência comprova que as relações sociais são importantes para manter uma vida saudável – apelava o outro para o aspecto científico, com uma ênfase ao professar a palavra “ciência” como se Franscisco fosse um filósofo ateu maluco – e talvez fosse realmente. E continuava:

– Eu mesmo, tentei e queria ser como você: bastar-me sozinho. Mas as relações sociais que travamos nos permitem levar uma vida mais equilibrada e novamente, saudável.

– Aí que está, Tadeu… reconheço que o propósito e o autodesenvolvimento podem possibilitar uma existência mais confortável e saudável, equilibrando os aspectos intelectual, físico, social, e por aí vai, mas como disse, sou um niilista. Não ateu, panteísta; mas niilista. Fico no meio dos ateístas e dos religiosos, que se curvam a racionalidade para criar doutrinas e evangelizações. O ateu usa da razão para abraçar o niilismo; O religioso usa do mesmo para professar sua fé.  Acho que toda a subjetividade humana não passa de meras perspectivas, e que a identidade morre, sendo isso inevitável. Os homens criaram deuses para não ficarem loucos com tamanho abandono; eis o mistério. Saiba que todas essas reflexões fico matutando o dia todo, e por isso acabo às vezes bebendo de noite quando paro para refletir tais pensamentos, lendo ou escrevendo.

– Entendo, Francisco, mas veja – voltava a apelar para as relações sociais –, quando lhe fiz o convite da semana passada para sair comigo e amigos ao final de semana, por mais que goste de ler e escrever, e tenha esse costume, foi porque imagino como deve sentir-se vivendo sozinho, e também para estimular-lhe um novo hábito que possa colaborar no seu autodesenvolvimento.

– Puxa, Tadeu, outro porém… Se eu tivesse mais tempo, certamente investiria mais em ler e escrever. Ao invés de tentar equilibrar minha vida como um gestor pelo lado das relações sociais, preferiria cavar fundo na produção de meus contos e romances. Por exemplo, além de relações que travo com os personagens dos livros que leio, claro que fictícios, os passeios de moto que faço e as conversas rápidas que tenho com tiozinhos ambulantes que vendem garapa em áreas rurais são para mim suficientes. Gosto de velhos; e talvez seja um com corpo de mais novo. Esses tiozinhos de roça tem um vocabulário minúsculo, mas transmitem uma sabedoria pela experiência da vida que tiveram que não pode ser delimitada a palavras. Eis o panteísmo.

Por ora, Francisco não queria entrar na sua perspectiva das relações sociais com Tadeu. Não tinha esperanças na humanidade e em nenhuma esfera social altruísta. Aceitava cada representação de ser humano por completo, incluindo suas mazelas. Professava por cada um deles compaixão. Preferia sentar-se junto de vis, miseráveis e pecadores cientes de sua miséria, como um deles, do que ao redor de justos evangelizadores e crentes de que mereciam o céu pela terra. Reconhecia que todas as ações humanas, e, portanto, ações sociais, das quais compreendia, agiam em prol de seus autores, mesmo que na última camada, onde toda demonstração de solidariedade, amor, afeto e demais do gênero, por mais simples que fossem, eram empregadas com o fim de regozijar a identidade do emitente, que usava dessa ação social para um autodesenvolvimento próprio, com fim em si mesmo. Para ele, toda ação social tinha fim individual, por mais que fosse bem-intencionada, e sem dúvida muitas eram. Se fosse somente pelas palavras aqui apresentadas, certamente o leitor convidaria Francisco a parar de bobeira e relaxar, pois nada de mal haveria nisso, e as relações humanas, apesar de deterem finalidade identitária, poderiam ser usadas como uma ferramenta para tapar a angústia da existência como um passatempo útil e salutífero. Mas por conta de enxergar todo tipo de relação social dessa forma, além dos traços de sua personalidade, tinha ainda mais dificuldades de socializar-se, por sentir como infame a necessidade de usar seus semelhantes para fins pessoais. Em simples cumprimentos a ele dirigidos, confessava ver no outro a necessidade de usá-lo para se sentirem queridos e educados. E vice-versa. Deixava essa opção de autodesenvolvimento como uma última cartada, que sacaria pouquíssimas vezes em sua vida.

– Tudo bem, Francisco. Mas como você sente-se quando lê e escreve? Você é feliz fazendo isso?

– Sim, é o que gosto.

– E seus sentimentos?

– Puxa, não sei o que falar aqui. Gosto de ler. Gosto de escrever. E gosto de ficar viajando nas ideias caminhando ou circulando pela cidade de bicicleta ou de moto.

– Olha, como amigo, estou à disposição para sairmos quando quiser, estando aberto caso queira experimentar um novo hábito, mas vou esperar o seu convite, por crer que possa estar incomodando-o quando faço eu próprio. Ciente de que o hábito da bebida possa ser revisado, saiba que isso tem consequências na sua vida pessoal, quanto também pode interferir negativamente aqui no trabalho – finalizava levantando-se.

– Sim, eu sei, Tadeu. Vou revisá-lo. Mas, por favor, fique à vontade para fazer os convites. Não me incomoda nenhum um pouco, não. Quando sentir a inclinação de aceitá-lo, certamente o farei. E perdão pela preocupação que causei com você indo até minha casa – devolveu enquanto também se preparava para deixar a sala.

Próximos dos trinta anos, o professor estimava Tadeu, o coordenador da escola, pelo seu equilíbrio e pela forma como enxergava sua existência, como se estivesse gerindo um negócio. Era, de fato, a estratégia mais razoável. Trabalho, academia, pós-graduação, idiomas, viagens, almoços de domingo com a família, passeios com amigos, eventos religiosos esporádicos e transas ocasionais com a namorada. Mas sabia que nunca conseguiria ser como ele; queimava por dentro, por todo o abandono, por toda a miséria humana, por toda forma de injustiça entregue ao acaso. Lia para buscar respostas que sabia nunca encontrar; a razão tinha limites; as palavras podiam tentar expressar o infinito, mas nunca conseguiriam representá-lo. E o que mais gostava nos romances clássicos, repletos de divagações sobre a existência e relações sociais conturbadas, era que cada personagem tinha sua própria perspectiva dela, e que nenhum era certo nem errado. Reconhecia que o hábito da bebida precisava ser revisto. E, para extravasar, escrevia como sua forma mais natural de expressão artística. Ou terapia, como queira chamar. Seu terapeuta chamava-se Dr. Olivetti, uma máquina de datilografar da marca italiana Olivetti versão Studio 45.

Ao saírem da sala, e apagarem as luzes, Francisco percebeu outros três professores em silêncio sentados próximos à porta da sala onde estava. Por mais que aguardassem Tadeu, que lhes dava carona em seu carro, certamente escutavam curiosos a conversa que travava, tentando compreender com as frases pronunciadas um pouco mais do perfil antissocial, taciturno e esquisito que Francisco exibia. Não os julgava, e até achava isso engraçado por dentro. Além do mais, pouco se importava com a opinião alheia. Para ele, a definição de loucura não passava de um ponto de vista incomum, e sem dúvidas o dele era um ponto fora da curva Gaussiana.

No trajeto de volta de moto, um vento abafado tocava-lhe o rosto através do capacete sem viseira. Nuvens cinzentas carregadas ameaçavam disparar a qualquer momento alguma tempestade rápida e intensa. Só queria chegar a sua casa, esquentar uma marmita congelada, comê-la com a porção de batata palha comprada na noite anterior, e dormir sem hora para acordar. Perto de chegar, o trânsito estava parado. Foi cortando os carros pela pista, e percebeu que um acidente havia ocorrido. Um carro com uma ciclista. Uma mulher com um dos braços ensanguentados, na faixa dos quarenta anos, estava estirada imóvel rente ao meio-fio da calçada em grama aparada, que servia como divisória para cortar os dois sentidos de fluxo de veículos pela avenida. Observando sua bicicleta jogada de um lado, e lá em frente um carro parado em diagonal, constatara ter sido um acidente grave. Algumas pessoas próximas tentavam reanimá-la; alguns carros haviam encostado. Não pudera ver mais nada. Seguiu em frente, com o dissabor de toda forma de vida, não apenas humana, ser tão frágil e entregue meramente ao vazio existencial. Comeu sem mais tanto apetite, e apagou exausto na cama com pernilongos zumbindo ao redor.

Ao despertar por volta das nove horas de sábado, estava novo em folha. Depois de abrir a porta dos fundos e as janelas do quarto e da sala, viu-se no espelho do quarto, e decidiu ir ao barbeiro aparar os cabelos e fazer a barba. Preparou café, pães torrados com pasta de amendoim, uma banana com aveia e ainda um suco de laranja com limão. Serviu-se como um rei. Depois de lavar a louça, e da habitual organização do apartamento, partiu de bicicleta para casa de sua avó. Na mochila de alças finas que portava nas costas, carregava uma garrafa de aguardente pela metade, uma Salinas de bálsamo quase vazia, e mais quatro long necks geladas da Budweiser. Doaria tudo a seu tio, outro bebum da família. Sabia que voltaria logo a beber, provavelmente em algumas semanas, por tanto gostar de cachaça, mas pararia por algum tempo para renovar os ares.

Ao encostar com sua bicicleta no portão, e bater palmas chamando por sua avó, Francisco notou um senhorzinho cortar a esquina montado em uma bicicleta motorizada indo estacionar do outro lado da rua. A máquina parecia ter sido fabricada antes de Cristo, com o quadro em cinza descascado, um mini tanque de gasolina da mesma cor, e um motorzinho de 50cc coberto de óleo queimado. Não resistiu, teve de ir lá ver a moto e falar com o velho, que já o olhava receoso pelo magricela de bigodes que vinha em sua direção:

– Bom dia! Linda sua bicicleta motorizada. O senhor a tem faz muito tempo? – perguntou ao alcançar a calçada oposta.

– Cinco anos – rumorejou o velhinho com a voz fraca e arrastada. Com cerca de 1,65m de altura, magro, mantinha um boné azul na cabeça e um bigode grisalho aparado, vestia uma camisa clara de mangas curtas, com tons de azul listrado, uma calça preta e um sapato social puído e marrom.

– Nossa, parece que faz mais tempo. Muito bonita ela. O senhor passeia bastante com ela?

– Sim, às vezes vou ao Feital com ela. Gosto de tomar uma em um bar por lá. Teve um tempo que ia até Moreira César, mas hoje em dia o trânsito está muito perigoso, – explicava o velhinho já mais à vontade.

– Sério? O senhor vai tão longe? – perguntava Francisco, tentando disfarçar sua incredulidade de como esse senhor podia tomar qualquer tipo de bebida alcoólica e não desfalecer em sequência. Bastava ele apontar o dedo para o céu que o próprio Jesus Cristo desceria para pegá-lo.

– Sim, mas hoje vou pouco. Estou com setenta e oito anos. Dói os braços ficar muito tempo nela. E as costas também.

– Ah, entendi.

– E hoje em dia, é complicado. Você sai nas ruas, e esses políticos filhas da puta, desculpe o termo, mandam bilheteiros ficar te atormentando em todo lugar com cartões para votação. Do outro lado tem os carros. Tudo fica lotado. E, nesses hospitais, quando a gente precisa ser atendido, tem de esperar mais de cinco horas.

– Sim… – gesticulava Francisco para continuar escutando.

– Esses caras chegam ao hospital e tem tudo na mão. A gente, pobre, não tem nada. Aí vou falar, e desculpe falar assim novamente, a gente é atendido e é essa mesma ladainha: “olha, o senhor não pode sair, não pode caminhar, não pode passear, não pode foder…” Ah, vai pra puta que pariu – proferiu com a face e garganta avermelhadas pelo esforço que tinha de fazer para puxar o ar pelos pulmões para falar.

– Sim, compreendo. É complicado… tudo é um caos, não é?

– Sim. Bom, deixa eu ir lá. Vou dar uma passada ali para o jogo do bicho, quem sabe? – apontava com um sorrisinho de canto nos lábios para uma banca de jornal de péssima aparência na avenida, defronte e ao final da rua onde estávamos.

– Combinado. Muito prazer, sou o Francisco.

– Igualmente, sou o José.

– Boa sorte, seu José – finalizava vendo o velhinho caminhar lentamente em direção à banca.

Depois de deixar as bebidas com seu tio, que morava aos fundos na casa de sua avó, Francisco foi de bicicleta até a barbearia. Havia dois barbeiros atendendo, e dois moleques na espera. Encostou a bicicleta e ficou sentado do lado de fora esperando. Observava os inúmeros veículos que passavam pelo local. Rostos dos mais diferentes tipos sendo exibidos pelas janelas dos carros abertas. Poucos pedestres arriscavam-se a caminhar pelas calçadas ausentes de sombra. Assim como ontem, um ar abafadiço e quente predominava por volta das doze horas.

Durante a espera que pareceu ser de quase uma hora, viu um carro branco passar com um shitzu com a cabeça atravessada pela janela aberta. Seus pelos longos do rosto escorriam levemente ondulados com o vento que recebia. Até um cão tentava tirar proveito de cada momento. Um corredor também atravessava pela rua da barbearia; mas, diferente dos que tem o hábito da corrida, esse seguramente não tinha. Com uma barriga proeminente, e um bermudão pesado impróprio para atividades físicas, estava com a aparência e lábios esbranquiçados. Ficou acompanhando-o vendo se não iria desmaiar. Jurou que fosse. Mas, o que lhe chamou mais a atenção foram os vinte e nove pombos acomodados lado a lado em duas fileiras de fiações que interligavam dois postes. Francisco contara três vezes. Impressionado, tentava compreender o porquê de esses animais terem escolhido justo essa área demarcada com resquícios de tentativas de diversos ninhos já aparentes por lá. Não conseguira a resposta.

– Amigo, vai cortar? – perguntava o barbeiro de lá dentro.

– Sim – levantou Francisco atravessando o minúsculo salão para sentar-se na cadeira de barbear.

– Meu, por que ficam tantos pombos alocados somente nessa área? Nunca vi isso antes – aproveitou para perguntar.

– Ah, é que a mulher da casa abaixo alimenta eles. Aí eles ficam todos ali. Direto soltam umas rajadas de caca. A gente escuta daqui quando chega ao chão. Tem de ficar esperto quando vai passar por aquela calçada. Eu nem passo.

– Entendi… caramba… – finalizava Francisco, perplexo por até pombos, malditos pombos, estarem ligados e sedentos por gozar das partes boas da vida.

Ao voltar para casa de sua avó para fazer a barba, aproveitou o convite para almoçar. Despediu-se, e saiu novamente com a bicicleta pelo portão para subir em direção ao seu apartamento. Coincidentemente, seu José voltava só agora da banca, e caminhava em direção a sua bicicleta motorizada. Francisco notara o velho sentar-se no selim, e em seguida, observar uma jovem que cortava a rua caminhando com suas belas pernas expostas em seu xorte curtíssimo. O velho parecia que ia comê-la viva com os olhos. Despediu de sua avó, e de seu José, com um grito para distraí-lo da presa que observava absorto:

– Falou, seu José! – O outro apenas gesticulou um aceno, e só foi depois da moça entrar em uma das casas, que ligou o motorzinho barulhento e partiu. Assim como seu José, Francisco sabia que ao menos estava vivo, e era por causa de loucos como ele que a vida até que tinha um pouco de graça.