e morreu por amor

Spike era pistoleiro. Jagunço do sertão brasileiro, já tinha visto de tudo nessa terra seca dentre essa gente pobre e miserável de um lado, e rica e insaciável de outro. Oriundo de João Pessoa, na Paraíba, a mesma terra que nos traria mais tarde Ariano Suassuna adulto – pois por ora era ele apenas cachopo travesso –, o cangaceiro não hesitava em sujar as mãos de sangue.

Fazendeiros contratavam-no para cuidar da expansão de suas terras que agricultores locais resistiam; A milícia, por fora, para educar criminosos foragidos que não deviam ser levados a audiência e ter seus direitos pleiteados; Políticos, locais ou nacionais, que quando precisavam subir ao poder em época de eleições, pediam para ele dar as boas-vindas para a família de seus rivais. Ele nunca recusava. Apreciava o ofício, e sabia que era o melhor nisso.

As pessoas raramente o viam. Uns diziam que tinha a face cheia de cicatrizes pela infância abominável que teve de viver nas ruas quando órfão, pois seus pais haviam sido assassinados junto de sua irmã mais velha quando pequeno, por gerações anteriores de fazendeiros que agora lhe remuneravam; outros expunham que carregava um cordão pendurado ao pescoço com vários bicos de corvo, expondo o quanto deles tivera de comer fingindo-se de morto quando mais novo para sobreviver à seca e a fome.

A verdade era que Spike não temia a morte. Conheceu quando mais novo todo tipo de violência física e psicológica pelos becos escuros da cidade, de bêbados e pederastas que aproveitavam de seu corpo ainda moço, fraco e nu. Não sabia o que o mantinha vagando de pé, e o que lhe fazia roubar pães e frutas velhas da feira. Quando conseguia, bebia aguardente ainda criança para suportar a faina diária. Assim cresceu; deformado, mas vivo. Seus olhos castanhos reluziam apenas ódio contra a raça humana. Não havia mais sobrado espaço para o amor ou sentimentos traiçoeiros. Era um vitorioso; um sobrevivente.

Seu primeiro padecente marcou-o profundamente: o comerciante Vilmar. Desses gordos suados, que não conseguem limpar a bunda direito, e nem se dão ao trabalho de tomar banho por isso, o padeiro agredia regularmente sua mulher por hábito e troça. Tapas no rosto, socos no ventre e beliscões onde as roupas cobriam os roxos – para a vizinhança não bisbilhotar demais – eram a ela agraciados. A coitada ainda se dedicava com o cuidado da casa, das crianças, do sexo do marido e apoiava todo seu sacrifício no misticismo católico cristão para crer no sentido da eternidade como uma única forma de suportar tal desgraça.

Não conhecendo seu nome de nascença, foi qual disse o rapazola quando perguntado por Valmir. Tinha ouvido no centro da cidade certa vez ser dito em uma televisão o nome Spike. Gostou do som ao proferi-lo, e nem fazia ideia de que a tradução para a língua portuguesa significava espinho, condizente com sua personalidade desalmada. Seu trabalho era de auxílio geral; ajudava um negro jerico que preparava os pães e bolos nos fornos; ficava responsável pela limpeza dos banheiros da pequena lanchonete; da organização das mesas e das entregas locais.

– Spike, preciso que termine de limpar as mesas quando fecharmos. Vânia precisará sair mais cedo hoje. – disse Valmir cerca de um mês depois de contratá-lo, referindo-se a única atendente que mantinha, uma velha abastada que vivia resmungando.

Quando o negro e Vânia saíram, o padeiro levantou-se de sua cadeira no caixa, e trouxe sua panturra suada e saltando sob o cinto da calça social.

– Sabe, Spike, você pode ter um bom futuro aqui dentro. Ter um trabalho registrado; conseguir comprar suas coisas, e até estudar. Já pensou nisso?

O garoto, se é que fosse possível descrevê-lo como tal apesar dos quatorze ou quinze anos, apenas ouvia o sujeito. Estava ciente das mazelas da raça humana. A rua estava imersa em seu corpo e em sua alma. A rua era sua escola; as praças seu recreio; as pontes seu teto; as praias seu quintal. As pessoas, inimigas. Continuou limpando a mesa.

– Estou falando com você, garoto – esbravejou Valmir empurrando-o.

– Um último pedido, meu velho – respondeu Spike, encarando-o intensa e deleitosamente.

Já havia tempos que ansiava experimentar a morte. Olhar em olhos que se apagavam. Sentir o último respiro de um moribundo. O calor de um corpo humano desfalecer. O garoto em si havia morrido, e talvez nunca tivesse existido. Carregava um canivete preso à cinta, bem escondido. Depois dos doze, conseguia se defender sozinho. Não tinha mais medo de nada, nem de ninguém.

– Do que está falando, seu moleque? Quer levar uma surra? – gritava Valmir vindo em sua direção.

O balofo tentou dominá-lo, mas Spike era mais ágil. Empunhou seu canivete com a lâmina destravada e atingiu curtos e sucessivos golpes no pescoço do adversário, perfurando-o inúmeras vezes. Pequenos jatos de sangue começavam a jorrar. Agora, era questão de tempo. Apenas desvencilhava-se dos socos atordoados ao vento que o jumento soltava ao ar, incrédulo por tomar consciência de que havia sido abatido.

Não demorou para que a história perpetuasse na cidade, e que Spike fosse visto como um assassino cruel e irreparável, e Valmir como uma vítima; como um pai de família, um marido cristão e devoto, trabalhador honesto e zeloso, respeitado na comunidade e vizinhança, e solidário ao contratar um garoto órfão por compaixão, e ainda ingênuo pela execução sem razões interpretáveis.

Spike não era tolo. Sabia que precisava sumir por um bom tempo. Eis a explicação dos corvos. Eis a explicação das cicatrizes. Eis a explicação do sertão. Eis a explicação do espinho. Passou fome e frio, sede e calor. Medo nunca fez parte de seu vocabulário. Sorria diante do perigo. Talvez quisesse morrer. Talvez quisesse caçoar da morte que não temia. Surgiram alguns patifes no caminho, que tratou de cuidar. Assim conseguia roupas, dinheiro e pistolas. Surgiram algumas virgens indefesas, que tornou de desflorar. Spike cresceu homem.

Ao voltar para a cidade, já era conhecido. Antes de apertar o gatilho, perguntava a cada agonizante:

– Um último pedido, meu velho.

A maioria dos cangaceiros clamava misericórdia. Era impressionante constatar que os durões eram manteiga por dentro. Não queriam morrer. Eram pegos em bares, em bordéis e em praças públicas. Depois de um duelo a moda antiga, a última bala era deixada para o final. Ao inverso, com os hortelãos costumava ser diferente. Morriam nobremente. Certa vez, seu Joaquim respondeu:

– Desejo uma última dose de minha aguardente.

O velho levantou-se, enquanto as crianças e esposa choravam amedrontadas no quarto. Dentro de seu gasto armário de madeira na cozinha, alcançou uma garrafa, sentou-se tranquilamente a mesa, serviu-se de um copo, e perguntou a seu carrasco:

– Aceita uma dose?

Spike assentiu com a cabeça, com a pistola ainda empunhada. Observou o homem encerrar sua dose, olhar grato para o copo, e responder de braços abertos com a face emanando paz e graça:

– Estou pronto.

Um tiro na testa. Um corpo inerte que desfalecia na cadeira, e escorregava ao chão. Outra família desamparada entregue ao acaso. Spike bebeu seu copo, montou seu corcel, e partiu.

No entanto, o destino reservava uma surpresa a seu coração que nunca antes conhecera o amor. Certa tarde, ao atravessar uma fazenda buscando algum abrigo para passar a noite, ouviu gritos longínquos que ecoavam pelo céu azul e pela terra descampada. Atou seu cavalo na sombra de um juazeiro, e escutou atento para conferir de onde o som emergia. Descobriu ser de um casebre distante, com dois magros cavalos atados dentre as cercas de arame. Os gritos eram femininos, e pareciam ser jovens.

Já havia passado por ocasiões similares. Provavelmente alguma família sendo atacada por bandoleiros; e claro, as mulheres passavam nessas ocasiões por maus bocados. Apesar da fama de sicário, aprendera a ficar de fora de intrigas, e somente agir perante as quais fora pago para cumprir o serviço. Mas algo dessa vez o intrigava. Uma moça – conferia ser a voz de uma apenas – berrava incessantemente. Ao contrário das outras ocasiões, que os gritos cessavam logo, e as raparigas assentiam com seu maldito destino, esta esbravejava como um feroz animal louco pela vida.

Apanhou uma pistola em cada braço, avançou, e adentrou a porta do casebre. Acertou duas balas em um dos sujeitos que segurava uma mulher seminua por trás, e estava prestes a baixar a calça pendente por cintos frouxos. Havia um casal de idosos mortos estirados ao chão. O outro agressor, que segurava os braços da jovem e estava deitado ao chão, em tempo, conseguiu puxar sua pistola do coldre depois de jogar a moça para o lado, e responder-lhe com um tiro que acertou de raspão a parte externa de sua coxa direita. Os outros passaram longe, e Spike conseguira refugiar-se para fora do casebre novamente.

Escondeu-se atrás da latrina, e viu o sujeito carregar a mulher empunhando a pistola no braço direito, e com o braço esquerdo, apertando-a em torno do pescoço deixando-a visível para uma possível troca de disparos.

– Só quero me divertir! Vá embora e estamos quites – gritou, procurando qualquer vestígio de onde Spike encontrava-se. Descobrira a latrina, só podia ser lá. E continuou falando:

– Não quero matá-lo. Depois deixo ela pra você. O que acha? Hein? O que acha, compadre? – perguntava avançando cautelosamente ao redor da latrina.

Rodou toda ela e nada, quando percebeu uma circunferência metálica saindo dentre uma fenda na madeira da casinha. Spike estava dentro dela, e não ao redor. Acertou o bandoleiro no meio da testa. A moça saiu correndo para dentro do casebre, enquanto ele cortava um trapo de pano que carregava e amarrava ao redor da coxa para estancar o tiro que sofrera de raspão.

Já anoitecia. Entrou no casebre. A residente, agora vestida, parecia aguardá-lo. Apontava-lhe uma faca de cozinha por detrás da mesa, e gritava atônita em sua direção:

– Vá embora! Vá embora, ou eu mato você. Eu juro que mato!

– Aquiete-se, mulher. Quero somente ter onde dormir essa noite. Não aguento mais as praias. Vou dormir aqui, importando-se ou não. Tranque-se no quarto, e não encha o saco. De manhã, terei partido – respondeu enquanto pegava o velho estirado ao chão.

– O que está fazendo? Largue meu pai! – berrava a jovem.

– Ele não é mais seu pai. Cavarei uma cova rasa no quintal, e enterrarei os quatro.

– Não pode colocar meus pais junto daqueles assassinos!

– Pouco me importa. Cave uma segunda cova, então, você.

– Ridículo. Você é um escroto! Miserável. Vá para o inferno. Maldito!

– Certamente irei, em breve.

Depois de recolher seu cavalo, amarrá-lo junto aos novos dois sem dono, e enterrar os corpos, retornou ao casebre. A lua cheia iluminava a pequena fazenda. A mulher estava sentada a mesa. Ainda empunhava a faca. Havia acendido duas velas: uma em cima da mesa, e outra na pia. Apesar do semblante exausto e doentio pelo dia incomum, Spike observou como era bonita. Morena, cabelos longos negros, olhos escuros, lábios carnudos. Avançou até o armário, e abriu-o.

– O que está fazendo? – perguntou a moça, aflita.

– Quero beber e comer. O que tem para comer aqui?

Puxou uma garrafa de aguardente cheia pela metade, pegou um copo da pia, e serviu-se.

– Está naquele armário – avisou a mulher apontando o armário próximo ao forno.

Spike sentou-se na outra ponta da mesa, com uma torta de frango e uma porção de batatas. Enquanto devorava toda a comida, acompanhada de várias doses de aguardente, perguntou a jovem:

– Por que não é casada?

– Já fui. Sou viúva, e voltei a morar com meus pais.

– Cadê seus filhos?

– Não tive filhos.

– Por que não?

– Mas o que é isso? Um interrogatório? Vá cuidar da sua vida, cretino!

Spike sorriu, e continuou:

– Aqui não há sofá; só há cadeiras. Se não quer problema comigo, prepare minha cama por aqui, e tranque-se no quarto.

A moça não ousou desobedecê-lo. Quando finalizou sua refeição, já meio embriagado, deitou-se em um surrado colchão que havia sido posto no chão, onde antes estavam inertes os pais da infeliz. Cobriu-se com alguns trapos que estavam acima, e dormiu. A mulher já estava trancada no quarto, e havia levado as velas para lá.

Não demorou muito para que acordasse de novo. Do quarto, repercutia um barulho insuportável de choro e soluços. Tentou abrir a porta – estava trancada –, o barulho cessara abruptamente. Disparou:

– Cale a boca, mulher! Quero dormir! Aquiete-se!

O silêncio perdurou só mais alguns minutos. Mais soluços e choro. Dessa vez, Spike levantara e arrombara a porta. Com o quarto iluminado por uma vela em cada criado mudo ao lado da cama, a moça, com o rosto coberto de lágrimas, pegou a faca e gritou:

– Vá embora! Não me toque, maldito! Vá embora!

– Eu só quero dormir! Cale a boca, e durma!

A mulher tentara acertar o peito nu de Spike com a lâmina. Por pouco não cravou em cheio, e conseguiu se desvencilhar ficando apenas com um corte raso. Arrancara a faca da agressora, e jogou-a pelos braços na cama. Ela levantou-se, e foi em sua direção, investindo contínuos socos e tapas no rosto. Spike conteve-a. Seus olhos se encontraram, e Spike beijou-a. Ela mordeu sua língua, e se afastou. Cuspiu em seu rosto, e ainda investia em mais golpes, quando Spike, mesmo com a boca cheia de sangue, beijava-a novamente. Agora, havia cedido.

Ao amanhecer, acordaram. Spike levantou-se, e fora vestir-se na sala. Tinha um compromisso pela manhã. Abater um fazendeiro local a serviço de outro de maior envergadura. A fazenda da vítima não ficava longe de onde estava. A mulher havia voltado a chorar.

– Se não quiser os dois cavalos, eu os soltarei. Quer eles? – perguntou Spike.

– Não, eu vou embora daqui. Vou ter com meus tios no Recife. Pegarei a estação ferroviária ainda pela manhã.

– Entendido. Então, adeus – despediu-se Spike, enquanto a mulher recolhia uma trouxa de roupas no guarda-roupa e preparava-se também para partir.

– Adeus – devolveu olhando-o uma última vez.

Dessa vez, Spike sentiu uma peculiar inquietação no peito. Nunca havia sentido isso antes. Não conseguia interpretar o que estava sentindo. Desconhecia os sentimentos. Não carregava preocupações. Vivia cada momento como se fosse o último, mas este, em especial este, parecia que por dentro não queria mais soltá-lo. Queria vivê-lo novamente. Era como se tivessem instalado uma barragem em um rio de fluxo intenso e constante. Queria segurar o fluxo. Queria controlá-lo. Mas não sabia como.

No quintal, retirou o selim e soltou os cavalos dos bandoleiros mortos. O sol já cobria de luz tudo que se movia; abraçava tudo que estava vivo. Não havia nuvens. Seria hoje uma tarde típica, azul, ensolarada e muito quente. Enquanto avançava em direção a fazenda do futuro moribundo, pensou em depois do serviço dar um mergulho na praia. Precisava espairecer suas ideias. Estava confuso. Sentia um leve rumorejar no peito, como se depois de tantos anos, quisesse viver e passasse agora a temer a morte. Pensou em voltar ao casebre para ver se a mulher ainda estava por lá, e ao menos, descobrir seu nome; mas seu orgulho o impedia.

Avistou a casa do fazendeiro. Aos fundos, duas crianças brincavam. Na entrada, um velho tirava um cochilo na rede. Presa fácil. Agachado, avançou lentamente desviando-se do campo de visão, caso esse acordasse. Contornou a casa, e enquanto estava prestes a chegar perto do alvo para abatê-lo, notou três capangas que vinham em sua direção. Provavelmente, rondavam perto do portão de acesso a fazenda, na parte alta da colina. Apavorou-se:

– Merda, como não pude percebê-los? Estúpido!

Começou a correr, mas alcançaram-no. Tentou uma troca de tiros, e conseguiu apagar um deles, mas depois não viu mais nada. Sentiu que caía ao chão de terra batida. O sol continuava cobrindo tudo que era vivo. O céu era azul; um azul claro e límpido. Ardia seus olhos vê-lo de frente, mas insistia. Era bonito. Alguns pássaros voavam ao longe, enquanto o rosto de um homem tapou sua visão. Percebera o cano de uma pistola, e depois, nada mais.