dança do embriagado

tanta mediocridade
e devoção. as palavras
surgem sem ter por onde.
preocupação com o fútil
e o agradável. as piores
companhias existentes
que blasfemam e vomitam
conforto e mesquinharia.

queime... queime
como um deus e será
lembrado. é a única vida
que existe. o resto é morte
e nada mais.

arte pela arte. viver
é um manifesto artístico,
tolo. racionalidade
é ferramenta. abstração
é fé. na vida,
e na morte.

Depois de escrever essas notas no caderno que sempre mantenho ao bolso, chamo o garçom e peço uma segunda dose da mesma cachaça envelhecida fornecida anteriormente. Com uma boa folga de dinheiro, nada melhor que ir a um bom bar sábado de noite, sentar sozinho e assistir a todos. Via de regra, quatro doses e cervejas a vontade para finalizar é uma boa estratégia para se embriagar junto das cores, sons, cheiros e conversas entretidas e cativantes de outras mesas. Observar somente. Contemplar. E mais que isso, apreciar bebendo e escrevendo a mão em folhas usadas e avulsas. Afinal, minhas palavras não possuem tanta importância assim, e é somente uma forma de expressão a mim tão comum quanto respirar, que deriva da essência da vida humana, a arte.

Sentado ao canto, onde a iluminação atinge-me com menor intensidade, escuto um casal jovem sentado na mesa a minha frente falar sobre o dia a dia da faculdade e planos para o futuro. O rapaz, com seus vinte e poucos anos, de costas para mim, esbanja convicção cega e determinada. Sinto compaixão e desejo-lhe boa sorte na primeira golada da segunda dose. A moça emana carisma, graciosidade e compreensão. Seus olhos negros intrigam-me. Desvio o olhar quando percebe que a estou olhando. O rapaz é um homem de sorte, se souber aproveitá-la. Ele bebe cerveja, e ela suco de uva, pela coloração. Acho curioso. Casais que bebem bebidas diferentes costumam ter de abrir mão de suas individualidades com mais intensidade pelo outro. O tal do bendito meio-termo social. A medianidade comunitária disfarçada. Espero que este seja apenas um pensamento estúpido, e não agouro. Gostei dos dois.

Distraio-me com a chegada de outros dois casais amigos ao recinto. Outra golada ao observá-los avançar os três degraus que levam ao piso do bar que funciona praticamente aberto ao ar livre. Por conta dessa visualização facilitada à rua e aos carros que passam, consigo associar que eles desceram do último carro estacionado no outro lado da avenida, um Renault vermelho pelo logo central na traseira. Não consigo discernir as variedades de carros e suas latarias, mas pelo design sei que é algo novo e de alto padrão. Ao menos, para uma cidade do interior. O que toma a frente no quarteto é o motorista e portador do automóvel. Avança confiante até chegar ao centro do salão, com sua jaqueta preta e tênis requintados, e aponta uma mesa perto de si perguntando aos demais o que acham, como se já não soubesse a resposta. A moça que o acompanha, magra e loira de olhos claros, veste botas compridas e uma blusa de lã verde escura de gola. Mantém um sorriso congelado ao rosto, como uma máscara. Está acostumada a ser servida, aparenta. O outro casal flui resignação. Um careca magro de polo verde limão, e uma mulher com pneuzinhos marcando a cintura em um suéter justo que não deixa de sorrir e mostrar seus dentes.

Peço ao garçom a terceira dose. Enquanto busca a cachaça para servir-me, vejo o panorama do boteco. Com cem mililitros de cachaça nas veias, as linhas que delimitam corpos, mesas, cadeiras e fundo se misturam, como se não houvesse divisória nenhuma, e tudo fosse parte de um conjunto maior. Como disse, estou no canto. Apesar de o bar ficar em esquina para uma rua escura, a entrada é de frente para avenida. Ao subir os degraus liberados por mini portões metálicos de tinta preta já desgastada, e adentrar o piso, há cerca de vinte mesas espalhadas. Uma ou duas apenas vazias. A minha, com dois assentos, é a última do lado direito subjacente a um baixo muro externo paralelo a avenida. Ao meu lado, uma mesa está ocupada por um velho e um quarentão, provavelmente. Escuto parte de uma frase da conversa ao ouvir o ancestral difamar com voracidade que quando fulano está sóbrio é um, e quando bebe é outro.

Independentemente de quem seja, pelo seu tom de voz, a informação foi suficiente para constatar tratar-se de um velho arrogante e autocrático, junto de um colega acabado passivo e ignorante, que teria dificuldade de diferenciar vinho de vinagre com uma prerrogativa pessoal. Em seus dias finais de burguesia, carregando convicções enrijecidas de uma vida maldita e egocêntrica, ainda não conseguiu perceber a distinção entre tolerância e verdade, sendo a primeira mais importante. Quando sóbrios, conjecturamos nossas verdades objetivas em busca de deter um controle ilusório de nossas vidas. Quando bêbados, tornamo-nos abstratos. Viva, Dionísio! Verdades absolutas são desmembradas e adquirimos tolerância em atividades que sóbrios certamente não teríamos estômago de absorver.

O garçom chega é enche meu mini copo. Agradeço e vejo, da outra ponta extrema do bar, ainda em tempo de o teor alcóolico não ter embaçado minha visão a longa distância, um casal mais maduro conversando. O que chamou minha atenção foi o fato de a mulher ter seus olhos carregados de lágrimas que se espalham pelo rosto, e o homem esboçar impaciência e indiferença. Ambos bebem cerveja e comem petiscos que não consigo identificar do quê. Que triste. Gostaria de poder dizê-la que ao chorar, não percebe que está olhando a si mesma, e não o filisteu. Autosentimentalismo e autocompaixão por um sonho que criou em sua mente. Mergulhada em sua fábula, as lágrimas refletem seu olhar para si mesma. Não vê o brutamonte. Só vê a si mesma. Queria poder libertá-la, mas não posso. Ninguém liberta ninguém. Estamos todos presos em nossas doutrinas e subjetividades. Apolo e Dionísio. Deus e o diabo. Herói e vilão.

Chamo novamente o garçom para mais uma dose, a terceira, acho, e pergunto onde fica o banheiro. Ele aponta um corredor escuro do outro lado do bar. Enquanto ele vai buscar a garrafa, aproveito para me levantar e ir ao banheiro mijar. Percebo que o álcool no sangue já está a todo vapor. É bom maneirar e manter o autocontrole. Levanto-me e busco caminhar pausadamente e em linha reta, atravessando as mesas, e enxergando rostos foscos que se misturam a luz do salão, as inúmeras cores, e a música “Refrão do Bolero” do Engenheiros do Hawaii, de fundo, que toca nas duas caixas de som instaladas nas laterais do teto. Que bosta. Lá onde estou não chega tão bem o som quanto aqui. Chego ao corredor escuro e a primeira porta a direita está escrito feminino em cor de rosa. Vou a segunda porta. Masculino em azul. Que merda de coloração. Abro a maçaneta encardida e avanço em um banheiro fétido, sujo e mal iluminado. O espelho é daqueles vinte por trinta centímetros de supermercado, cor laranja. A pia ao menos tem duas torneiras, além de quatro mictórios e um vaso sanitário no local, dos quais dois estão ocupados, um está quebrado pelo aviso em folha sulfite escrito à mão “NÃO USE. QUEBRADO.”. Ah, e o vaso. Deus do céu. A porta está fechada e não sei quem está lá, mas sinto o cheiro de bosta de cevada vencida. Decido mijar logo e dar o fora. Vou ao mictório vazio e urino. Sinto respingar pequenas gotículas em minhas mãos. Pouco me importa. Aciono o botão de descarga e lavo as mãos. De relance, noto meus olhos no espelho. Retiro-os imediatamente. Não gosto de ficar olhando-me embriagado. Sinto tristeza e calafrios. Saio e faço o caminho de volta. Agora, menos tenso. A dose já está cheia. Sento-me com gosto na cadeira de madeira com encosto horizontal e tomo uma golada.

O casal de jovens a minha frente já foi embora. Queria vê-los mais uma vez. Agora quem ocupa são duas quarentonas, acho, carregadas de maquiagem e roupas decotadas, mesmo com o frio que faz as quase onze horas de um sábado à noite. A ruiva, de cabelos encaracolados, olha-me. Devolvo o olhar. Mal nenhum faz olhar as mulheres. Devia haver exposições do tipo mais autênticas que os puteiros descarados com tetas e bocetas que funcionam, mesmo nunca tendo visitado um nem sentir inclinação para isso. A beleza das mulheres está em seus olhos. Muito mais abstratos e encantadores, a meu ver, pelo menos. Ela bebe algum destilado com frutas, e sua companheira, de costas para mim, também. Mal sabe que ando a pé e vim para cá beber apenas. Olhando-me, talvez pense que algum dos carros estacionados seja meu, e que poderei levá-la junto de sua amiga para um motel e bancar pizzas e mais bebidas. Não posso, e nem gostaria de isso fazer. Prefiro beber esta noite.

Finalizo a dose, e chamo o garçom novamente para mais uma. Agora acho que é a quarta. Será? Acho que sim. Ao chegar com a garrafa, acrescento o pedido da cerveja. É bom encerrar a cachaça por aqui, para conseguir voltar a pé sozinho tranquilamente e contemplar as ruas e o luar que brilha no céu azul escuro estrelado. Ele pergunta qual cerveja desejo. Peço Antarctica. Antes de terminar minha última dose, a garrafa de cerveja acolhida em um recipiente de isopor já está posta na mesa ao lado de um copo modelo lager vazio e transpirando de gelado. Meu amigo, fiquei excitado. Finalizo a dose ainda cheia em uma só golada, e encho meu copo com a urina do diabo. Deixando-o inclinado, cada gota percorre o caminho de chegar até o fundo do copo para encontrar-se com as demais, acomodando-se em seu lugar de estar e evaporando-se em bolhas de espuma em seguida. Como isso é belo e artístico. Porra. Como é lindo. Bebo um gole que quase termina com o copo. Energia revigorada com minha garganta álgida e hálito agradável. A embriaguez corpulenta da cachaça dá lugar a uma empolgante e cadenciada valsa de Chopin.

Percebo, ao bebericar o copo de cerveja, que emprego mentalmente muito mais palavrões e termos de baixo calão quando bêbado. Intrigante. A moral que carregamos quando sóbrios dá espaço a um ser contido vulgar e animalesco. Ou seríamos apenas nós mesmos? Viagem demais ficar divagando com essas filosofias dialéticas por aqui. Ainda mais com uma garrafa de cerveja trincando de gelada e um bar cheio para assistir. Falando em assistir, percebo que o playboy da jaqueta preta está com o careca magricela na calçada do bar fumando cigarros como se estivessem tragando charutos importados. Filha da puta extravagante. Fico enojado com essas coisas. Por que isso me incomoda tanto? Será que é por que estou também com vontade de puxar um trago em um maldito Marlboro vermelho, e que minha garganta está coçando para isso, mas recuso-me a fim de não cair novamente em um vício que deixei há anos? Deve ser.

Finalizo a garrafa, e peço mais uma. E, ao pedir ao garçom que me atende, noto que minha voz está saindo embaralhada. A embriaguez está chegando ao limite. Daqui para a anarquia falta pouco. Autocontrole, vamos lá. Respiro fundo e solto o ar devagar. A gordinha quarentona de costas a minha frente, que se senta junto à ruiva, recebe a baforada nas costas descobertas pelo decote da roupa de cima e olha-me com reprovação. Vadia. Não posso respirar agora? Porra, acho que estou ficando bêbado. Ou melhor, já estou. Vou parar nessa cerveja que chegar, e dar o fora. Inclusive, o bar já está mesmo esvaziando e daqui a pouco fechará. O garçom chega com a nova garrafa todinha congelada por fora e troca a vazia pela nova no recipiente de isopor, antes de encher meu copo. Agradeço com um aceno de cabeça e tomo uma golada. O playboy e o bunda-mole do careca já estão de volta à mesa. Gritam ao conversar, visto que não há mais ninguém nas mesas ao lado. Fico encarando-os. Principalmente o esnobe da jaqueta. Por incrível que pareça, ele percebe minha ousadia e cutuca o magricela apontando para mim. Não desvio o olhar. Quero que tudo se exploda.

Antes de terminar o primeiro copo da última garrafa, os garçons começam visitar as mesas que estavam atendendo informando que o bar irá fechar em breve. Aceno novamente, e aproveito para pedir a conta. Pagarei em cartão. As quarentonas a minha frente se levantam, adentram o recinto interno para pagar a conta, acredito, e saem para calçada. Poucos minutos depois, um carro com som alto e dois rapazes na frente faz uma rápida parada rente à sarjeta e recolhe as mulheres toda risonhas. No bar, ainda resta eu, o velho ao lado agora sozinho, o casal de amigos e mais umas duas mesas ocupadas. Encho novamente meu copo e percebo que será o último. Como isso é triste. Viro a garrafa em cento e oitenta graus para que nenhuma gota fique de fora da festa, e ao menos fico satisfeito que tenha conseguido encher um último copo praticamente. Este tomo bem devagar, com breves relances de olhos fechados, só sentindo o ambiente e se misturando. Integrando-se ao bar e aos demais colegas infelizes que lá frequentam a procura de pequenas doses de evaporação.

Termino. Respiro fundo e me levanto. Rapaz. Que viagem. Apesar de conseguir caminhar tranquilamente, acho eu, dou passadas em uma brisa que dispensa qualquer tipo de droga ilícita. Como o garçom não entregou a conta ainda, vou pagar direto no caixa. Um gordão com camiseta dos Beatles atende-me e diz ter ficado em quarenta e nove reais e cinquenta centavos. Incrédulo, pergunto: como? Não tomei quatro doses e duas cervejas? Ele responde áspero sem olhar-me que o garçom anotou cinco doses e duas cervejas. Numa boa, não vou discordar do garçom que me serviu. Parece gente boa, assim como todos aqueles que nos servem e nos são úteis. Mas, pergunto: você acrescentou alguma taxa de serviço, fora as bebidas? Ele responde que somente a gorjeta do garçom. Peço para retirar e pago no débito o total de quarenta e cinco reais consumidos somente com bebidas. Antes de reprovar-me, entenda-me: não tenho nada contra o sujeito nem contra qualquer garçom de bar, e até desejo que sejam bem remunerados para melhor servir, mas quem é seu empregador é o boteco, e não o cliente. Aceito pagar por seus produtos que devem ter incluso os variados tipos de serviço. Vir com essa de taxa adicional é conversa mole para empregador pagar menos aos caras e ainda saírem ganhando a troco de clientes covardes. E no mais, não sou do tipo que tem dinheiro para ficar esbanjando.

Enfim, pago a conta, e com certa sobriedade retornada depois dessa conversa que envolvia números – devia cobrar o filha da puta do caixa com mais uma cerveja por isso –, recorro a brisa anterior tentando-a não perder de vista. Alcanço a calçada e dou seguimento nas passadas que me levarão ao meu apartamento em poucos minutos, não mais que vinte. Logo que atravesso a avenida já um pouco deserta, noto uma praça. Mas o que me chama a atenção são as luzes amareladas de seus postes alocados em uma linha reta em seu centro. Antes de alcançar a reta imaginária que delimita a visualização da luz de apenas um poste, percorre-me um súbito arrepio. Um pressentimento. Alcanço a linha imaginária e mal vejo a hora de dar mais passadas. Ora, só consigo aqui ver uma. As dou, e sinto novamente o maldito arrepio. Queria ter apreciado mais uma vez aquela antiga visualização de várias luzes vibrando vida e história do outro lado. Aqui, deste, apesar de ter uma vista oposta dos mesmos malditos postes, parece-me e sei que está chegando ao fim.

A lua cheia está clara e brilhante, e quando adentro ruas com postes sem iluminação, consigo ver milhares de estrelas em um céu aberto e azul marinho. Vaporadas de ventos fortes da madrugada tentam derrubar-me. Mas mantenho-me de pé. Não há alternativa. Sob a luz do luar, vejo luzes de prédios distantes em intervalos de minutos trocarem de andar como um inverno de Vivaldi. Luzes apagadas mesclam com luzes acesas de apartamentos com vidas enjauladas. Animais presos em seus mundos individuais. Pessoas vagando com seus dilemas, problemas e anseios. Sonhos que o vento já deixou pra trás. De pé aqui, ao adentrar o portão automático do condomínio que abro com o controle de bolso, vejo o passado. Sinto a história caminhar e adentrar o apartamento que antes era chamado de lar. Ao seguir para a porta de número cinco, vejo um rapaz terminar de fazer flexões ao ar livre e adentrar a porta para abraçar uma moça que está terminando de fazer um bolo de fubá com goiabada. Doidera. Isso não existe mais. Passou. O que resta é o que há. E o que há também está passando. Luzes que emanam de prédios e trocam de lugar. Sonhos. Problemas. Dilemas. Pouco me importa o amanhã. Tudo queimará e seremos cinzas.